“Le Deuxième Acte”, ou “O Segundo Ato”, o novo filme do realizador francês Quentin Dupieux, teve as honras de abrir a 77.ª edição do Festival de Cannes na terça, uma das edições mais estelares do festival francês que inclui os novos filmes de Francis Ford Coppola, David Cronenberg, Yorgos Lanthimos, e George Miller só para citar uma parte do A-list. Dupieux está longe de fazer parte desse clube exclusivo mas é um velho conhecido de Cannes, e dos franceses, tendo vários dos seus filmes estreados no festival em anos anteriores e por fim, subido a competição em 2019 com “Deerskin”.
Ao longo dos anos, Dupieux estabeleceu uma conexão curiosa com o cinema do seu país. Suas comédias eram uma espécie de pastiches desavergonhados que ao mesmo tempo em que elaboravam comentários sobre os paradoxos da vida moderna, tentavam desafiar as tradições do cinema francófono. A fórmula deu tão certo que cada vez mais as grandes estrelas do cinema francês queriam estar no seus filmes, o que adicionou ainda mais à aura do autor indie com um certo prestígio. Isso tudo ajudou a posicionar Dupieux num lugar estranho. Não se tornara propriamente num queridinho da Cahiers, tampouco chegava a ser suficientemente comercial para ser adotado pelo mainstream.
Como Dupieux chegou até aqui parece ser um mistério para muitos. Olhando para a filmografia dele, o que fica exposto é uma coleção de filmes que apesar de parecer de certa forma coerente revela um truque narrativo que os torna imediatamente reconhecíveis: uma premissa inusitada onde a lógica da normalidade é subvertida para logo a seguir se criar um loop em torno da tal circunstância. Um maneirismo com o único propósito de atrair atenção mas sem muita coisa a dizer. Os anglo-saxónicos têm uma palavra para isto: gimmick.
O “gimmick” Dupieuxiano está praticamente em toda a sua filmografia; o pneu assassino de “Rubber”, o túnel do tempo em “Incroyable Mais Vrai”, o homem que se torna obsessivo após comprar uma jaqueta de pele de veado em “Deerskin” ou ainda mais recentemente o rapaz que interrompe uma peça de teatro ao meio em “Yannick”. Talvez isso ajude a explicar essa estranha atração aos filmes do francês. O problema é que uma vez ultrapassada a curiosidade inicial desse gracejo insólito, é como se tivéssemos ouvindo um disco arranhado que se emperrou no refrão de uma música enfadonha.
Eis então que cheguemos à “Le Deuxième Acte”, uma comédia negra auto referente que se exibe num elenco de luxo que inclui Léa Seydoux, Vincent Lindon, Louis Garrel e Raphaël Quenard, aqui na quarta colaboração com Dupieux, após “Mandibles”, “Fumer Fait Cough” e o já citado “Yannick”.
É a história de um grupo de atores que está gravando um filme e ao mesmo tempo tendo crises existenciais que se justapõem à história que estamos assistindo; sempre num ritmo de morde e assopra como se a todo tempo quisesse induzir a sua audiência para um determinado caminho para logo em seguida sabotá-lo sem piedade. Pelo meio disso tudo, aproveita para dar conta de vários temas sensíveis: a cultura do cancelamento, o #metoo, homofobia, o estado da arte e a função do cinema.
A personagem de Quenard é responsável por uma série de piadas transfóbicas e homofóbicas que parecem querer dar o tom que o filme irá seguir, para logo depois serem repreendidas pela personagem de Garrel aos prantos “não pode dizer isso! estamos sendo assistidos” enquanto os dois olham para câmera num tom autodepreciativo como alguém implora para não ser punido. O famigerado comentário meta do filme dentro do filme e que pensa que é mais inteligente do que realmente é.
E então aqui retornamos ao gimmick habitual do realizador, como se acreditasse realmente que está subvertendo todas as regras, mas de fato apenas se utilizando da autodepreciação como uma forma de proteção e distanciamento emocional, no qual qualquer responsabilidade pela “mensagem” é imediatamente terceirizada ou, em última análise, desculpada: “isto é apenas um filme” justifica a personagem de Vincent Lindon a determinada altura.
Na conferência de imprensa do filme na tarde de ontem, uma jornalista foi direto ao ponto: “afinal, qual a mensagem do seu filme?” ao ponto que, com um certo embaraço, Dupieux responde que não tem mensagem nenhuma, que queria apenas fazer troça da indústria cinematográfica e pelo meio “se divertir”.
Para um realizador que construiu uma carreira à base de filmes que rejeitavam qualquer tipo de vulnerabilidade, a fim de evitar uma conexão mais honesta com o espectador, feliz seríamos nós se ele aplicasse este nível de sinceridade aos seus próximos filmes.