Diários de Otsoga – Modos de Ficção

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Diários de Otsoga

O plano da borboleta. Um plano inteiro, uma escala que enche o quadro. A luz, levemente a cair, recorta-a contra o fundo vegetal. Ela ali permanece, quieta e como que à espera do tempo de filmagem e do tempo correto e concreto da tomada de vistas.

A imagem pousada da pausada borboleta afirma a aposta analógica de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes: o filme como um olhar, uma busca do visual, do visto para ser imagem, a imagem como ocularidade centrada e objetiva. Filmar uma borboleta é uma decisão. Registá-la analogicamente é uma afirmação. Como o olho a vê – ela que é a imagem de um pormenor que tem que ser procurado para ser visto, sentido e registado – desde o momento em que o voo termina e o corpo-asas se pousa, pressupõe sempre um ato de espera e de paciência, o acompanhar com o olhar, a atenção e a espera, o assento sincrónico com a sua paragem e, por fim, a contemplação registadora.

Se a câmara for esse análogo do olho, e se estiver a filmar, a operação é toda ela de uma adequação e extensão do processo ocular que busca a imagem grande do pequeno visto/filmado. A borboleta ocupou metros de película, os da espera com o olhar e os da filmagem com a câmara. Esse registo vindica a aproximação ao cinema como essa perfeita analogia do olho humano, aquele que por vezes procura e segue, na calma do seu tempo, de modo a reter e registar o momento certo em que essa imagem grande se pousa e se faz a si mesma: a borboleta, pousada e em pausa, a deixar-se filmar, em toda a sua força e fragilidade, fina e colorida.

E este nem é um filme acerca de um pormenor tão contemplativo e documental, é sim sobre a decisão clara de como filmar, do que se tem ou não para filmar, mas mais ainda sobre a absoluta vontade do ato de filmar e construir a narrativa fílmica pela liberdade de o fazer. É um meta-cinema, é a narrativa da narrativa do fazer o filme. A dúbia forma e o incerto modo da  sua ficção vindicam e materializam a singularidade com que os  corealizadores, o elenco e a equipa técnica o produzem. Conhecendo-se a lógica da sua casa de produção, não deixa de ser ainda mais vincada a sua aproximação meta-estrutural à tessitura dramático-narrativa deste Diários de Otsoga, quanto mais ela não deixa de piscar o olho a um modo ficcional de outras indústrias e outros mundo populares: a estrutura (meta) deste filme é muito semelhante à de um filme como Memento, de Christopher Nolan. E  com isso, este Otsoga (título ao contrário de agosto, mês de confinamento e filmagem) não tem problema algum. É um paralelismo que afirma a necessidade de olhar para a forma-filme e para a forma-cinema como a salutar desconstrução-construção para o reconhecimento e reconfiguração das suas técnicas de narrar e fazer. Mas, ao contrário de Memento, este nosso português Diários de Otsoga não utiliza a inversão do tempo fílmico como um modo de complicar o desvendar narrativo, mas sim como uma forma de obrigar a que se olhe atentamente para essa dúbia construção do ilusório filmado, enquanto premissa fundamental do que é o ser-cinema.

A força deste Diários de Otsoga está pois na feitura do filme pela primacial e continuada desconstrução – e reveladora reconstrução – do seu valor ficcional puro, já que a sua ficção é tomada pelo documentar do seu fazer e pela ficcionalização do documento-registo da sua técnica ficcional. Enquanto política autoral e política de produção, a estratégia – deliciada e deliciosa – de quem faz o filme é a de deixar sempre latentes as perguntas (tão do nosso cinema contemporâneo): se é sempre ficção este filme, é-o também a ficção dessa ficção, ficção como seu documentário de produção, ficção a fazer de conta que não é ficção enquanto ficção a ser feita? Qualquer resposta a estas questões, no que elas possam induzir à delícia de quem veja o filme, só podem ser afirmadas, não por assentimento ou negação, mas sim pela aceitação de que se está perante um filme sobre cinema a ser feito. E um meta-cinema que valoriza esse bloco narrativo fundamental que é a cena. Diário-filme invertido da feitura de um filme – sob a duresse das medidas de combate à pandemia de Covid-19 – por parte dos seus atores Crista Alfaiate (como ela própria), Carloto Cotta (como ele próprio), João Nunes Monteiro (como ele próprio), realizadores Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, argumentista    Mariana    Ricardo,   diretor   de    fotografia   Mário Castanheira, decoradora Andressa Soares, assistente de realização Patrick Mendes, técnicos de som Vasco Pimental e Miguel Martins e restante equipa de produção, o filme-diário dá a primazia à encenação dos dias de trabalho fílmico, de preparação ou filmagem, ensaio ou improvisação, tarefa ou desafio lançado. Cada dia é constituído por uma cena (ou duas), separado por um intertítulo (rohmeriano na sua coloração e grafia) que faz saltear o filme por entre dias/jornadas de trabalho específicas.

Duas cenas exemplificam o gosto com que esta equipa faz o seu filme como um projeto de cenas: aquela em que os três atores improvisam  diálogos para um microfone enquanto estão na banheira (citation Godard?), em resposta ao desafio dramático urdido por Gomes e em que, no seguimento do que é esse trabalho construtivo do improviso interpretativo, afirma Cotta: “…isto é que é gastar película!…”; a outra é a última do filme e primeira da narração e aquela em que a equipa ouve as obrigações e recomendações de segurança da Portugal Film Comission, no que toca à produção audiovisual durante a pandemia. Toda a equipa está presente, uma câmara de 16 mm filma, uma segunda câmara começa a filmar, irrompe uma discussão entre Patrick, o assistente de realização e Vasco, o técnico de som, sobre emails recebidos e lidos, clara ficção para o filme, um arrufo do pessoal do cinema, comédia bem-disposta do filmmaking.

Ambas afirmam a cena de cinema, a cena de um filme. A primeira declara a necessidade e a premência do analógico, da película: que ela se gasta, assim o é, mas gasta-se a fazer um filme, a fazer uma das suas partes, um improviso que seja, gasta-se bem. A segunda afirma a cumplicidade e a força de uma equipa de cinema a fazer o seu meta-cinema, para fazer olhar e pensar quem o vê. Não é isso mesmo que se espera de um filme?

 

© 2021 Luís Miguel Martins Miranda

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