Para celebrar o 10.º aniversário do Cinema 7.ª Arte, convidámos Hirokazu Koreeda a falar um pouco connosco sobre o seu cinema e sobre “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões”.
Não foi uma entrevista fácil. Para além de estarmos perante um dos realizadores mais respeitados do cinema mundial, a barreira linguística a transpor foi também um grande desafio. Por essa razão, queremos agradecer à Raquel Godinho pela tradução para português, a partir do japonês, das palavras do realizador.
Cinema Sétima Arte: Os seus filmes têm uma ligação fortíssima à infância e, acima de tudo, à unidade familiar. Ao longo de toda a sua obra, é dos temas mais explorados, desde “Ninguém Sabe”, “Andando” a “Tal Pai, Tal Filho” e, por fim, a “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões”. Pode falar-nos um pouco sobre a sua infância?
Hirokazu Koreeda: Eu era uma criança bastante séria que adorava ler e a minha casa era parecida com a casa que se vê em “Shoplifters”. Tal como Shota, também sentia que o meu lugar era fechado dentro do guarda-roupa a ler.
C7A: Começou a sua carreira a fazer documentários e, em 1998, realizou “After Life”, um filme de ficção, embora imbuído num estilo documental. Nos seus filmes posteriores, essa estética solidifica-se e, apesar de serem obras de ficção, o real é amplificado precisamente pela relação entre os dois estilos.
HK: Para conseguir aprofundar as minhas histórias, alterei a minha antiga política de forma a permitir que as pessoas que entrevistava se refletissem nas personagens que criava. A ficção e o documentário são géneros que não são completamente distintos. No entanto, penso que são diferentes na forma como abordam o mundo. Quanto à sua coexistência, o real tende a ser uma máscara, não é verdade? De forma a criar uma outra realidade.
C7A: Para Krzysztof Kieslowski, filmar um documentário era um ato de profunda intimidade. A ficção, por outro lado, permite explorar o íntimo de forma controlada de forma a termos acesso total a ele. Partilha deste sentimento?
HK: Por outras palavras, a ficção é o ponto de vista de Deus. Enquanto humanos, conseguimos distinguir esse género de sentimentos e emoções, enquanto se olharmos com os olhos de Deus, a tendência é embelezar tudo, como acontece muito em ficção. Quando estou a realizar, penso sempre como é possível criar ficção com os meus próprios olhos.
C7A: O grande plano tem um significado muito forte nos seus filmes. É uma peça essencial da sua cinematografia. Hoje em dia, no entanto, parece-me existir um uso excessivo do grande plano que pouco, ou nada, diz. Uma das cenas mais memoráveis em “Shoplifters” é a cena lindíssima em que vemos Sakura Andô, em grande plano, a queimar a roupa de Yuri… Este tipo de contemplação é planeado ou nasce do momento?
HK: As minhas decisões são tomadas no local das filmagens, no momento em que vejo os atores em cena. Mais do que por uma razão específica, ou qualquer tipo de simbolismo, utilizo o grande plano quando quero “ouvir mais” e não “ver mais”. Quando quero “ver mais”, prefiro o silêncio. E as crianças crescem independentemente da sociedade em que vivem. Este filme é uma história de uma família que as guia até a essa separação do núcleo familiar.
C7A: E em relação a ver cinema, o que significa para si um bom filme?
HK: Os filmes são como uma boa refeição. Quem os vê delicia-se com um sorriso na cara. Um bom filme não só regala o olhar, como sacia a fome do espírito.
C7A: A experiência cinematográfica está a passar por uma transformação profunda. O cinema torna-se cada vez mais de consumo privado em vez de coletivo. Em Portugal, a sala de cinema tem vindo a perder público gradualmente. Esta realidade vive-se no Japão?
HK: A meu ver, tal como o papel é necessário para escrever um livro, a sala de cinema é essencial a um filme. Infelizmente, porém, receio que esta forma de ver as coisas vai acabar por desaparecer com o tempo.
C7A: Em relação ao cinema português. Tem alguma ligação a ele?
HK: Sim. Conheço os filmes de Manoel de Oliveira e de Pedro Costa.
C7A: Para terminar, pode partilhar connosco um projeto próximo em que esteja a trabalhar?
HK: Há cerca de 15 anos, comecei a escrever um argumento intitulado “Cloak” (Manto), uma história com um único ato nos bastidores de um teatro. Infelizmente, não tive capacidade para acabar de o escrever.
O que é afinal um ator? Quando interpreta uma personagem, quando ri ou chora, como é que retém o seu “eu” e os seus sentimentos, não como personagem, mas como pessoa? Foram estas as incertezas que me motivaram a começar a escrever argumentos.
Em 2011, quando Juliette Binoche, uma amiga de longa data, veio ao Japão, conversámos sobre a possibilidade de virmos a colaborar num filme. Nessa altura, lembrei-me do argumento que tinha deixado esquecido numa gaveta qualquer. Decidi voltar a pegar nele e rescrevê-lo. Possivelmente terá lugar em França.
Nasceu assim a ideia de criar uma história de uma mãe atriz e da sua filha que decide não seguir as pisadas da mãe.
Para além de ter sido galardoado com a Palma de Ouro por “Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões”, Hirokazu Koreeda esteve nomeado por mais quatro vezes para o prémio mais cobiçado do Festival de Cannes por “Distance” (2001), “Ninguém Sabe” (2004), “Tal Pai, Tal Filho” (2013) e “Umimachi Diary” (2015).