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Exorcistas dos fantasmas do nosso passado colonialista em Cinema

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No seio do turbilhão social em que deparamos – o debate constante sobre a nossa história colonialista, e o que realmente devemos fazer com ela – tem suscitado uma evidente polarização, com alguns faíscas politizadas pelo meio. Porém, nunca saído do Cabo das Tormentas, estreia nos nossos cinemas o filme “Fantasmas do Império”, um documentário que explora este nosso percurso pelo desenvolvimento e transfiguração do olhar colonial, apresentando um conjunto de obras portuguesas que vão desde as propagandas do Estado Novo até às ficções antes e depois do 25 de Abril. Uma costura gerada pela investigação e dedicação de Ariel de Bigault, documentarista francesa radicada em Portugal com um interesse tremendo em África e nas questões raciais que germinaram daí.

O seu trabalho revela-se num confronto de imagens com os seus, possíveis, criadores. Muitos filmes são visualizados e comentados pelos próprios realizadores, atores ou figuras-chaves do nosso entendimento audiovisual e cinematográfico. Com isto para sublinhar que Bigault não comenta, nem interpreta estas mesmas imagens e ditos-e-feitos no seu trabalho. Segundo ela, os filmes reunidos são o que basta como expressão sua, “corto, manípulo, crio com isso um diálogo através da forma e das imagens (…) quero deixar o espectador viajar e querer pensar um pouco sobre o filme.

Muito trabalhoso foi o filme, ao mesmo tempo muito interessante para mim porque era importante ser honesta. Ser honesta com o quê? Com o propósito do filme. O propósito do filme não é declarar que o português foi ‘mau’, porque ao dizer isso é sinal que não avançamos nem um bocadinho. Aliás, é quase um mainstream dizer isso. O propósito aqui é ‘ouvir’ as imagens trazidas pelo ex-colonialismo e o pós-colonialismo. O que elas têm a dizer sobre a relação de Portugal com estes países. Como se pode verificar no filme há uma evolução a nível da linguagem imagética.” referiu a realizadora que posteriormente lamenta ao Cinema Sétima Arte sobre a falta de um tema essencial na nossa cinematografia “Não há nada sobre a escravatura. Temos quatro séculos de escravatura e até há data não existe nenhum cineasta que tenha pegado nisso. Os brasileiros, por exemplo, souberam retratar na sua filmografia e existem muitos filmes de lá sobre esse tema. Isso, porque a escravatura é constitutiva no Brasil, da mesma forma que o tráfico de escravos faz parte de Portugal.

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Ariel de Bigault fantasmas do imperio 4
Orlando Sérgio e Maria do Carmo Piçarra

Contudo, desatracamos do porto, Ariel de Bigault aborda a génese destes fantasmas: “fiz quatro filmes no Brasil, todos eles sobre a questão racial, porque toda a minha experiência lá foi um choque para mim. Convivia com negros e o facto de ser uma branca no meio deles fez com que lidasse com várias situações de racismo.” Este acumular de contactos com tais sentimentos reprimidos mas exprimidos de maneira violenta, foram suficientes para motivar a realizadora a regressar a Portugal para concretizar um filme sobre “o espaço dos atores negros no cinema português”, mas ao perceber que “praticamente, não tinham espaço algum” o projeto transfigurou-se. “Nesse processo descobri o arquivo colonial do ANIM [Arquivo Nacional da Imagem em Movimento] um interesse crescente no trabalho da Maria do Carmo Piçarra.” acrescentando também que na conceção desta metragem pôs “de lado muito do cinema etnográfico, porque pretendia demonstrar uma ideologia, um olhar já construído, aliás um olhar de Cinema.

“Fantasmas do Império” inicia-se com as jornadas epopeicas (é desta forma que são descritas pelo autor das mesmas) de Fernão Mendes Pinto, adaptadas para a grande tela por João Botelho, realizador que fez questão através deste debruçar numa das grandes obras literárias de Portugal de realçar uma dicotomia na imagem do navegador. “Peregrinação” (2017), para quem desconhece, exibe Fernão Mendes Pinto como um apaixonado explorador encantado pelas prometedoras maravilhas do Oriente e ao mesmo tempo um cruel pirata e saqueador. Para Ariel de Bigault, era importante a sua obra começar com este preciso filme, não só pela tal ambiguidade que opõe à imagem glorificadora da chamada e discutida “Era dos Descobrimentos” (uma ideia sobressaída durante o Estado Novo), mas também pela dita cegueira pelo Oriente.

O grande sonho dos navegadores portugueses era, de facto, o Oriente. A África era insignificante, só começando a ter valor unicamente para Portugal graças ao tráfico de escravos a partir do século XVI. Esse era o único interesse, não havia vontade alguma de explorar a África. Simplesmente, o objetivo era o Oriente. África, essa, ficava no meio da passagem.

A coleção de Ariel de Bigault é de facto impressionante, passando pelos filmes de António Lopes Ribeiro, mais concretamente propagandas, passando por comédias localizadas como “Zé do Burro” (1972), de Eurico Ferreira, ou o bélico de impulso nacionalista “Chaimite” (1952), de Jorge Brum do Canto, ou o banido “Deixa-me ao menos Subir às Palmeiras” de Lopes Barbosa (“filme que reapareceu em 2015”), o ainda algo desprezado “Acto dos Feitos da Guiné” (1980), de Fernando Matos Silva e as derrota colecionadas por Manoel de Oliveira em “‘Non’, ou Vã Glória de Mandar”. Quanto as obras recentes (“todos os filmes pós-colonialistas são bem diferentes a denunciar o colonialismo”), para além da mencionada odisseia de Fernão Mendes Pinto – “Peregrinação” – conta-se ainda o incontornável “Tabu” (2012), de Miguel Gomes (que recusou o convite de participar no continuo debate proposto pelo filme), o muito discutido “Posto Avançado do Progresso” (2016), de Hugo Vieira da Silva, “As Cartas de Guerra” (2016), de Ivo M. Ferreira, e a obra de Margarida Cardoso o qual toda ela focalizada em Moçambique.

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A realizadora confessou a falta de algumas obras, entre as quais o muito recente “Mosquito” (2020), de João Nuno Pinto, cuja ausência apenas derivou da indisponibilidade de Ariel de Bigault em visualizar o filme. Para os menos atentos, a longa-metragem produzida por Paulo Branco estreou uma semana antes do primeiro confinamento pandémico.

De Botelho a Vieira da Silva, de Cardoso a Carmo Piçarra, e com participação especial de Matos Silva, Lopes Barbosa e os atores Ângelo Torres e Orlando Sérgio, todos contribuíram para esta iniciativa de entendimento com estas imagens e com este anexado olhar, mas a pertinência integrou a intervenção de José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa. A ele foi lhe questionado sobre a pertença destes registos e memórias, mantendo-se atualizado no aceso debate sobre a culpa colonialista. “José Manuel da Costa referiu que estas obras estão no ANIM, logo são património português, porém, tem a opinião de que devem ser partilhados com os países colonizados. Mas há problemas com esses países independentes, muitos deles sem a devida capacidade de arquivo” remata a documentarista.