“Jongens”: o recato que ensina a amar e a descobrir-se

“Jongens” é breve em tempo de ecrã, mas imenso na intimidade e na intensidade emocional
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“Jongens” (2014), de Mischa Kamp

Em 2014, a holandesa Mischa Kamp lançou Jongens”. É uma daquelas obras pequeninas em duração, só uma hora e dezasseis minutos, que facilmente passa despercebida num mar de filmes juvenis gay barulhentos. Mas, olha, se te sentares e realmente mergulhares na sua calma, descobres uma força tácita e impossível de ignorar.

É como quando te sentas num café e, de repente, reparas em todos os detalhes que antes te escapavam. Jongens” é isso: uma narrativa sussurrada sobre Sieger, um jovem atleta cuja vida escolar e afectiva pulsa numa monotonia quase hipnótica.

À primeira vista, podes pensar mais um drama adolescente, mas não te deixes enganar. Reduzir o filme a isso é injusto. Kamp conduz-nos por um território sensível, atento às minúcias da vida interior de Sieger. E sim, há o delicado rito do coming out, mas é muito mais do que um termo da moda ou uma fase que passa. É uma etapa de autoconhecimento, daqueles caminhos que te deixam confuso e excitado ao mesmo tempo. Eu lembro-me da minha adolescência, a tentar perceber quem era, e percebo perfeitamente o que Kamp quer mostrar. Especialmente para quem se encontra nas fronteiras da bissexualidade, esse percurso pode revelar-se desconcertante e solitário; é como tentar aprender a dançar sozinho num salão repleto de casais.

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No centro do filme, Sieger alterna entre a vontade de se revelar e o medo do olhar dos outros. É quase palpável. Marc, o colega de equipa por quem está apaixonado, é o oposto: confiante, aberto e entregue à própria autenticidade. Lembro-me de ter tido um amigo assim no liceu, e que alívio era estar perto dele. A tensão entre Sieger e Marc não depende de grandes diálogos. Bastam olhares, hesitações e gestos discretos, pequenos movimentos que falam mais do que qualquer palavra poderia.

Assistir a Jongens” é revisitar memórias pessoais e universais. Todos nós já fomos aquele jovem que se perde entre desejo e medo, navegando dúvidas plácidas e às vezes amando alguém que ainda não sabia amar a si próprio. E que vulnerabilidade estranha e bela, não é? Kamp mostra-a sem romantizar, sem filtros. É cru, é paciente, é real.

E, sabes, o filme expõe-nos algo simples, mas difícil: o amor do outro não garante a autoestima. O que floresce entre duas pessoas é, antes de tudo, um reflexo do cuidado que cada uma dedica a si própria. A linguagem cinematográfica do filme, aberta e quase artesanal, traduz isso: campos extensos, rios sinuosos, treinos solitários e caminhos rurais transformam-se em metáforas visuais da liberdade, da travessia e do encontro interior.

Tenho na memória a época em que vivia numa fazenda, de caminhar sozinho pelos canaviais e pensar que ninguém podia adivinhar o que se passava dentro de mim. Kamp capta isso lindamente.

A câmara observa com reverência, sem invadir e sem teatralizar, enquanto a luz acaricia rostos em transição e a música sussurra emoções com brandura. No clímax, Sieger apreende uma verdade que muitos assimilam com dificuldade: amar o outro implica amar-se primeiro, numa entrega que não espera milagres, mas se funda na verdade pessoal.

Jongens” oferece uma lição subtil e definitiva: o acto de se descobrir é concomitante ao acto de se entregar. Enfrentar os próprios temores não diminui a vida, pelo contrário, amplia-a com uma intensidade rara, conferindo à existência a doçura singular de um meneio autêntico.

Além disso, o filme evidencia como a adolescência é uma fase radicalmente complexa. Não se limita a altos e baixos dramáticos, mas constitui um terreno de experiências muitas vezes silenciosas, tenras e subtilmente dolorosas. A representação de Kamp sobressai precisamente por não sucumbir à tentação de transformar essas nuances em show. O filme move-se na serenidade das pausas, onde o não dito fala mais alto do que tudo o que poderia ser pronunciado.

Outro aspecto insigne é a ausência de antagonismo explícito. Não há confrontos de rejeição ou explosões dramáticas, o maior desafio é interno. Este tratamento hodierno amplia a compreensão de que o verdadeiro inimigo na jornada de autodescoberta é muitas vezes o medo interior, o preconceito interiorizado e as incertezas fundamentais sobre quem somos. Lembro-me de tantas vezes ter sentido um nó no estômago só por pensar em dizer algo importante a alguém, e Kamp consegue transmitir isso na perfeição.

No contexto da altura, Jongens” surgiu como um sopro de frescor. Em tempos em que a representação da bissexualidade no cinema ainda oscilava entre estereótipos e invisibilidade, Kamp oferece uma narrativa que valoriza a fluidez dos afectos com naturalidade e respeito, abrindo espaço à reflexão, à conversa e ao debate, dentro e fora do universo LGBTQIA+.

Ao terminar, o filme deixa-nos uma marca que transcende a tela. Lembra que a liberdade de ser quem se é não deve ser um privilégio, mas um direito. Uma conquista diária que exige coragem, autocuidado e apoio. São lições universais que atravessam idade, género e orientação. E, honestamente, depois de ver Jongens”, apetece-me dizer a todos, jovens e nem tão jovens assim, que vale a pena arriscar sentir, arriscar ser e, acima de tudo, arriscar amar.

Podes assistir ao filme gratuitamente no canal do YouTube Cinema Virtual.