Os documentários de música, normalmente, ficam-se pelo clássico desenrolar de eventos de forma cronológica, certinha, ao longo da vida do músico ou banda a que se dedicam. “Little Richard: I Am Everything” é um desses casos e, tendo em conta, que se centra na vida de uma das figuras mais excêntricas e vorazes da História da música, isso tanto pode ser uma virtude como um defeito.
Quer isto dizer que, colocando as mãos em matéria prima tão apetecível, a sua realizadora Lisa Cortes parece ter-se sentido assoberbada ou a edição terá ditado que tivesse de cortar tanto material que o resultado final acabasse por parecer um bocadinho aquém daquilo que poderia ter sido.
Em termos de criatividade e inventividade, “Little Richard: I Am Everything” é um documentário convencional que não vem para cena apresentando um pouco da personalidade e escolhas da sua realizadora, acabando por resultar muito bem como testemunho para que o legado do genial Little Richard não se perca para as gerações vindouras.
Fica a saber-se, convenientemente, que este é o verdadeiro pai do Rock n’ Roll e o quanto influenciou a grande maioria dos maiores nomes da música Rock e Pop, incluindo nomes como David Bowie, James Brown, The Beatles, The Rolling Stones e muitos outros.
São tantos os nomes grandes que beberam da sua influência que chega a soar ligeiramente surreal que Little Richard não tivesse tido o devido protagonismo em vida – o cantor faleceu em 2020 e foi apenas agraciado com um prémio carreira no final dos anos 90. Nesse aspeto, o trabalho de Lisa Cortes tem o seu ponto mais forte precisamente ao focar essa influência e as razões pelas quais não houve o devido reconhecimento.
As questões raciais, a sua postura disruptiva numa altura em que mais ninguém fazia quele tipo de música, a sua honestidade, a sua abertura em relação à sexualidade, tudo isso contribuiu para que Little Richard fosse ultrapassado no seu próprio campo por outros e subsequentes artistas brancos. Por outro lado, também foi um dos primeiros artistas a ser apreciado e ouvido tanto por negros como por brancos, numa altura em que a segregação e divisão era real e não havia possibilidade de misturas.
“Little Richard: I Am Everything” foca-se sobretudo nessa linha narrativa e faz ainda o difícil trabalho de ir ao encontro de mulheres com quem o artista teve relacionamentos e que ainda se estão vivas, concedendo uma perspetiva ligeiramente diferente daquela que o público dele teria acerca da sua sexualidade, embora a personalidade de Little Richard seja tão mais complexa do que reduzi-la a apenas os homens ou as mulheres com que se relacionou intimamente.
A sexualidade, contudo, não é o que o define nem o documentário mostra querer que assim o seja, já que também gira muito em torno dos seus traços de personalidade e das marcas positivas que deixou na vida de muita gente, direta ou indiretamente.
“Little Richard: I Am Everything” funciona muito bem como testemunho completo tanto da importância do legado musical do músico como também das barreiras sociais, raciais, sexuais e pessoais que derrubou – e foram muitas.
Dividido entre as orgias, as drogas, os 3 ou 4 concertos por dia, 5 dias por semana, e os sentimentos de culpa que o assolavam de tempos a tempos, Little Richard dedicou-se ainda, em várias temporadas, à religião, tentando salvar a sua alma do fogo do inferno, vendendo Bílbias, dando sermões e tornando-se mesmo pastor.
Nascido num contexto familiar muito tradicional e rígido, também filho de um pastor que fabricava álcool ilegalmente para sustentar a quantidade imensa de filhos, Richard levaria pela vida fora os ensinamentos da Igreja, sobretudo para se culpabilizar acerca da sua própria natureza. Feliz ou infelizmente, a igreja nunca lhe permitiu ganhar o suficiente para se sustentar, por isso a música acabaria sempre por ser o seu refúgio.
Superficialmente, o documentário ainda se foca nas raízes musicais que estão na base do som de Little Richard, com quem aprendeu a tocar piano, as influências dos blues, do gospel, da música negra improvisada em que qualquer objeto, cantores que reverenciava, sobretudo Rosetta Tharpe, a sua grande e admitida referência.
No final, “Little Richard: I Am Everything” parece apenas abarcar superficialmente todos os aspetos da vida deste furacão, mas poderá ser precisamente porque Little Richard é maior e muito mais complexo do que se possa pensar. Será fácil ficar assoberbado com tantas facetas e é esse sentimento que é mais preponderante neste trabalho, o de que não havia braços suficientes para agarrar tanto material e torná-lo tão complexificado quanto o seu objeto.
Apesar de tudo, é importante para que a verdade seja conhecida quanto ao papel que Little Richard no contexto da música norte-americana e na génese, no fundo, da música popular que irradiaria daquele território para o resto do mundo. Little Richard é não só o verdadeiro pai do Rock n’Roll como também o pai de um certo tipo de atitude perante o espetáculo, a entrega, a vivacidade, a integração de elementos do drag (por onde também passou como Princess LaVonne), que modificaria por inteiro o panorama musical global.
Lisa Cortes tinha pela frente uma tarefa hercúlea com “Little Richard: I Am Everything” e, em parte, o seu resultado é satisfatório, desempenhando bem o seu papel para que não se esqueça o artista e para que se saiba com precisão o quão pioneiro foi em tudo o que fez.
Na generalidade, fica sempre um pouco aquém no que toca a arriscar na criatividade, qualquer que seja o motivo pelo qual isso tenha acontecido. É um bocadinho pop quando devia ser mais rock, às vezes um pouco videoclip quando deveria ser mais concerto de Little Richard: falta aquela centelha à altura do artista.