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O Irão sob o olhar de Cannes: os filmes de Jafar Panahi e Saeed Roustaee

Cannes expõe a resistência iraniana em duas visões de cinema, “Un simple accident” de Jafar Panahi e “Womand and Child” de Saeed Roustaee.
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As últimas duas edições de Cannes ficaram marcadas pela forma como o festival olhou para o Irão. Não necessariamente político como Berlim, Cannes parece empenhado em tornar visível as tensões internas e as contradições de um regime que insiste em silenciar seus artistas. Este ano, dois filmes muito distintos ocuparam espaços centrais na Croisette, lançando luz sobre estratégias díspares diante da repressão: Un Simple Accident, de Jafar Panahi, e Woman and Child, de Saeed Roustaee. Dois filmes que tratam da sobrevivência num país onde fazer cinema é, para muitos, um ato de resistência.

Un Simple Accident, novo filme de Panahi, chegou ao festival com a aura inevitável de evento político. E não por acaso. O cineasta foi preso em 2010, acusado de “propaganda contra o regime”, após anos de perseguição por parte das autoridades iranianas. Passou meses na infame prisão de Evin, condenado a seis anos de detenção e a uma proibição de vinte anos de filmar, dar entrevistas ou sair do país. Ainda assim, seguiu filmando clandestinamente: This Is Not a Film, Táxi e No Bears transformaram a censura em atos de resistência.

Neste novo trabalho, a provocação de Panahi é mais frontal. A história começa com o atropelamento aparentemente banal de um cachorro, mas logo descamba para uma espiral de tensão moral e política: o motorista do carro, forçado a parar numa oficina, é reconhecido por um mecânico como seu antigo torturador. O mecânico o sequestra, cava um buraco para enterrá-lo vivo e, no auge da vingança, hesita. Será mesmo esse o homem certo? Ele então vai em busca de outra testemunha, também torturada, e depois mais outra, mas a incerteza continua a persistir. Juntos, essa trupe de ex-prisioneiros, agora vivendo suas vidas como pessoas comuns, se envereda num jogo de encenação e dúvida — uma espécie de tribunal improvisado onde verdade e justiça são menos objetivas do que se gostaria.

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Só que Panahi transforma esse thriller de vingança numa comédia de erros, como se quisesse encenar deliberadamente um teatro do absurdo. Por vezes, essa escolha escancara suas limitações: gestos rígidos, diálogos artificialmente encenados, marcações cênicas excessivamente teatrais. Ainda assim, é também nesse desconforto que o filme encontra sua força. O confronto íntimo se torna alegoria de um país inteiro, e o humor, quase cruel, não suaviza a tensão — ao contrário, a intensifica. Quando o Estado falha, resta apenas a encenação, e nela, a dúvida pesa mais do que qualquer veredito.

A estreia de Un Simple Accident em Cannes reverbera o impacto de The Seed of the Sacred Fig, de Mohammad Rasoulof, apresentado no ano passado. Rasoulof, também cineasta dissidente, precisou fugir do Irão poucos dias antes da première do filme no festival, após ser condenado a oito anos de prisão. Seu filme, que narra a angústia de um juiz paranoico diante da revolta das filhas, é uma resposta direta à revolução das mulheres  que, após o assassinato de Jina Mahsa Amini pela polícia moral por usar o véu de forma “inadequada”, desafiaram o regime queimando seus hijabs em praça pública.
Em Cannes, Rasoulof subiu as escadarias do Lumière segurando as fotos de seus atores, proibidos de deixar o país — um gesto silencioso e poderoso que falava de ausência, resistência e solidariedade. Panahi, por sua vez, chegou ao festival com menos alarde, embora seu ato de filmar clandestinamente carregue uma coragem igual ou até maior. Ambos os cineastas, em suas obras e atitudes, expõem a corrosão das relações mais íntimas sob um regime paranoico, onde o medo dissolve a confiança e transforma a vida cotidiana numa zona de conflito constante.

A memória de Juliette Binoche chorando numa coletiva de imprensa de 2010, ao saber da prisão de Panahi, retornou com força este ano. Agora como presidente do júri, ela representa não apenas uma empatia pessoal, mas uma história de apoio constante ao cinema iraniano. A eventual premiação do filme não seria apenas um gesto artístico, seria também um ajuste de contas com o passado recente do festival.

Woman and Child

Dois dias depois da comoção em torno de Panahi, Woman and Child, de Saeed Roustaee, estreava sob um ruído muito diferente. Antes mesmo de sua exibição, o filme fora acusado por cineastas dissidentes de ser “propaganda estatal”, por ter sido produzido com aval do regime. A polêmica evidenciou um dos dilemas mais antigos do cinema iraniano: onde termina a arte e começa a colaboração?

A história acompanha Mahnaz (Parinaz Izadyar), uma enfermeira viúva de 45 anos que vive com seus dois filhos, Aliyar (Sinan Mohebi) e Neda (Arshida Dorostkar), além da mãe (Fereshteh Sadre Orafaee) e da irmã Mehri (Soha Niasti). Mahnaz inicia um relacionamento com Hamid (Payman Maadi), um motorista de ambulância carismático, porém manipulador. Preocupado com a desaprovação de seus pais, Hamid pede que Mahnaz esconda a existência de seus filhos durante o processo de noivado. Relutante, ela aceita, enviando as crianças para a casa do avô paterno (Hasan Pourshirazi). Paralelamente, Aliyar enfrenta problemas na escola e é expulso por seu comportamento rebelde, o que agrava ainda mais as tensões familiares. Um acidente trágico ocorre, desencadeando uma série de eventos que levam Mahnaz a confrontar traições e perdas, embarcando em uma busca por justiça.

Apesar de ter enfrentado censura por Leila’s Brothers em 2022, com direito a uma sentença de prisão de seis meses e uma proibição temporária de filmar, Roustaee retorna a Cannes sem sinais de recuo. O novo filme provocou reações intensas quando estreou na quinta-feira. Além de rotular o filme como propaganda, a IIFMA (organização liderada pelo produtor Kaveh Farnam, radicado em Dubai) criticou o fato de que as atrizes, incluindo a protagonista Parinaz Izadyar, aparecem de hijab, em um momento em que muitas mulheres no Irão têm justamente abandonado o véu como forma de protesto. Para a organização, que afirma representar centenas de profissionais do cinema iraniano — mais da metade ainda vivendo no país —, essa escolha é vista como uma traição ao movimento “Mulher, Vida, Liberdade”, nascido após a morte de Mahsa Amini em 2022. Dado esse contexto, não é de se estranhar que a veia feminista dos filmes dos filmes de Roustaee incomode tanto as autoridades iranianas, e agora, parte da diáspora também.

Justapostos, Un Simple Accident e Woman and Child oferecem um estudo de contrastes: o clandestino versus o oficial, o gesto frontal versus a nuance calculada, o dissidente versus o cúmplice (ou talvez o conformado). Mas o que os une talvez seja mais interessante do que o que os separa. Ambos falam de estruturas que esmagam o indivíduo. Ambos encenam personagens em busca de uma saída; mesmo que essa saída seja provisória, ambígua, ou francamente desesperada.