Uma potencial palma emerge em Cannes: “The Seed of the Sacred Fig” de Mohammad Rasoulof

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E no último dia da 77ª edição do Festival de Cannes, a imprensa internacional parece ter encontrado o seu potencial candidato à palma de ouro, que será entregue na noite de sábado pelo júri liderado por Greta Gerwig.

“The Seed of the Sacred Fig” do iraniano Mohammad Rasoulof estreou com aquela que pareceu ser a ovação de pé mais longa de todo o concurso oficial. Se os aplausos cronometrados indicam realmente alguma coisa como dizem, talvez esteja aqui a palma de 2024.

Desde que o filme foi anunciado na competição, uma certa tensão pairou sobre a sua estreia, o que levou inclusive o festival a omitir deliberadamente a sinopse oficial do filme do seu site, aumentando o mistério. Apenas duas semanas antes do início do festival, a notícia de que Rasoulof fora condenado a oito anos de prisão por conspiração contra a segurança nacional do Irão adicionou ainda mais tensão ao imbróglio. Rumores sugeriam que o realizador tinha sido pressionado a retirar o filme do festival ou enfrentaria consequências ainda mais graves.

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À medida que crescia a possibilidade de o filme não poder estrear em Cannes, uma reviravolta digna de um filme de suspense aconteceu: Rasoulof fugiu do Irão para a Europa e agora estava livre para comparecer à estreia mundial do seu filme no maior festival do mundo.

E assim foi. Na tarde de sexta-feira, Rasoulof subiu triunfante as escadarias do Lumière, acompanhado por metade do seu elenco e segurando fotografias de dois dos seus protagonistas, Misagh Zare e Soheila Golestani, ambos impedidos de deixar o Irão. A premissa do acontecimento que o filme seria, estava toda posta à mesa.

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Agora descoberto “The Seed of the Sacred Fig”, torna-se claro porque as autoridades iranianas quiseram banir o filme do mundo. Ele acompanha Iman (Misagh Zare), pai de duas filhas e um homem de fé que tem uma lealdade devota ao governo para o qual trabalha. O seu bom trabalho, aliás, valeu-lhe uma nomeação para o Tribunal Revolucionário, o mesmo tribunal que condenou o realizador Rasoulof à prisão. Iman é promovido a juiz-procurador, um papel que lhe permite decidir tanto o destino dos condenados à prisão, quanto a aprovação ou não da aplicação da pena de morte. Esta promoção coloca Iman num dilema moral, forçando-o a confrontar as contradições entre sua fé, sua lealdade ao governo, e a sua consciência.

Najmeh (Soheila Golestani) é a esposa de Iman, uma mãe afetuosa que apesar de ser submissa ao marido, tenta gerir as tensas relações entre ele e as filhas, Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki). Quando Iman perde o seu revólver, acreditando que desapareceu dentro da sua própria casa, uma crise se instala: se relatar a perda da arma aos superiores, pode receber uma sentença de três anos de prisão e ver a sua credibilidade e reputação destruídas. É então que decide investigar o incidente por contra própria e isso desencadeia um surto de paranoia que escala a um ponto de onde não existe mais retorno.

A narrativa desenrola-se no contexto da brutal morte da jovem Mahsa Amini em 2022, uma tragédia que desencadeou uma onda de indignação pelo Irão e motivou protestos em todo o país. Mulheres assumiram a dianteira desses protestos, com hijabs sendo queimados em praça pública como forma de expressão. Rasoulof habilmente entrelaça o filme com imagens verdadeiras desses tumultos e da subsequente brutalidade policial após o falecimento de Amini, conferindo ao filme um caráter de urgência.

Rasoulof fez um belíssimo e inquietante filme político sobre a corrupção do poder e a opressão sistemática das mulheres sob uma sociedade patriarcal e teocrática. Mesmo nos seus momentos mais fracos, quando tenta forjar um thriller doméstico no estilo gato e rato, o filme mantém a força do seu discurso. Rasoulof sabe bem como controlar a sua narrativa e não tem medo de complicar as coisas. Ao mesmo tempo que desafia os limites da conduta moral do seu protagonista, e evita identificar rapidamente perpetradores, ele explora as nuances e as complexidades de um sistema onde todos são vítimas.

Através de Iman, o realizador expõe a corrupção de um sistema judicial que, sob o manto da justiça, perpetua a opressão e o medo. É uma crítica poderosa às dinâmicas de poder e à instrumentalização da fé para justificar atos de brutalidade.

Se vencer amanhã, como parece indicar as reações apaixonadas logo após a sua apresentação, o filme certamente terá de lidar com uma uma leitura mais cínica da coisa. Alguns podem acusar “The Seed of the Sacred Fig” de já vir com o selo do filme “importante”, com uma “mensagem séria” a transmitir. Um paradoxo que, no limite, parece também revelar uma verdade inconveniente.

Essa ambiguidade é ainda mais evidente ao lembrarmos que, há apenas quatro anos, o Irã proibiu Rasoulof de comparecer à estreia de “There Is No Evil” no Festival de Berlim. Este filme, que era uma coleção de quatro curtas-metragens, um tanto esquecíveis, e que exploravam o sistema de pena de morte no Irã, acabou conquistando o urso de ouro, num júri liderado por Jeremy Irons e do qual Kléber Mendonça Filho fazia parte. O prémio foi visto com um certo ceticismo, afinal, era a Berlinale; um festival conhecido por sua inclinação política e por premiar filmes que refletem questões atuais.

De qualquer forma, se o filme terá ressonância por entre o júri de Greta Gerwig no palmarés de amanhã à noite, será uma aposta duplamente significativa. Além de atestar a relevância de um feito artístico que é testemunha do seu tempo, poderá também enviar uma mensagem que é, de facto, importante, para o mundo.

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