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Paula Tomás Marques sobre “Duas Vezes João Liberada”: “tentei encontrar pessoas trans e queer na história”

"Duas Vezes João Liberada" de Paula Tomás Marques "Duas Vezes João Liberada" de Paula Tomás Marques
"Duas Vezes João Liberada" de Paula Tomás Marques

“Duas Vezes João Liberada” foi uma das boas surpresas do Festival de Berlim (mesmo sem ser premiada), defendendo com mérito a participação portuguesa na Perspectivas, a secção promovida pela nova diretora Tricia Tuttle, dedicada a primeiras obras, em substituição da anterior Encontros. Elogio merecido pela coragem demonstrada em fazer bem com poucos meios, em que o cinema se concentra essencialmente na causa que se defende. Parte desse mérito reside na partilha e cumplicidade entre a cineasta Paula Tomás Marques (antes Tomás Paula Marques) e a atriz June João (antes João Abreu), ambas artistas trans e co-autoras do guião, num processo colaborativo que engloba também cumplicidade da produtora Cristiana Cruz Forte e a edição de Jorge Jácome (vencedor do prémio FIPRESCI, em Berlim, edição de 2021, na secção Fórum).

Apesar do filme chegar longe, a um dos principais festivais classe A, registe-se a ausência de apoios institucionais – incluindo a falta de do ICA -, contando apenas com o apoio da Gulbenkian e da Câmara Municipal de Lisboa, além do prémio monetário obtido pela curta “Dildotectónica”.

Partindo de uma reflexão distanciada, mas também participativa, sobre uma personagem de ficção, não-conforme, evocam-se igualmente fantasmas do passado, presentes em registos de tribunais do Santo Ofício, ao longo dos séculos XVII e XVIII. O resultado revela-se uma fascinante abordagem sobre questões de identidade LGBTQIA+, sabiamente filtrada pelo cinema, e pela própria inscrição meta, através de um filme que nos revela os seus procedimentos. Quase como uma investigação académica e audiovisual, onde o que vemos no ecrã, acaba por ser também discutido pelos seu próprios autores e intervenientes,

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João Liberada uma personagem que procura reviver outros corpos não-binários ao longo da história, procurando sustentar que essa vontade desconforme não é uma preocupação apenas dos nossos dias. É aí que ganha expressão o filme (dentro do filme) onde a atriz João June vai, paulatinamente, questionando as decisões de mise-en-scène do realizador (no filme, interpretado por André Tecedeiro). Ou seja, a dúvida é constante. Faz parte do método.

“Qual é o filme que se está a fazer?”, questiona-nos (questionando-se) Paula Tomás Marques, em Berlim, durante a nossa entrevista (na qual participaram também a produtora Cristiana Cruz Forte e o ator Caio Amado), confirmando a ideia da colaboração entre Tomás Marques e June João. “O filme é um bocadinho das duas, é um prolongamento da investigação.” A tal parte académica começou numa pós-graduação em Sociologia, “em que investigava os movimentos sociais feministas e transfeministas”. Foi nesse contexto que “tentei encontrar pessoas trans e queer na história”, algo que foi partilhando com ela. “Aliás, a June tinha muito a dizer sobre isso e tinha opiniões muito fortes. Foi até mais como amigas inicialmente, começámos a sentir que queríamos discutir estas coisas. Só depois percebemos as questões à volta da investigação e dos julgamentos que encontrávamos”. Essa ideia era também partilhada por Caio Amado, estudante de arte e multimédia e já com participações em projetos de amigos, em contexto de escola e depois já de ter rodado a sua própria curta. Pois, como nos conta, a sua motivação foi “conhecer o pessoal queer e trans português que faz cinema.”

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Paula Tomás Marques

É neste posicionamento que importa convidar o espectador a fazer parte dessa realidade, dessa mediação histórica. E cinematográfica. “A vivência das pessoas à minha volta, de alguma forma fazem parte das coisas do filme. Tal como outras pessoas com as suas vivências, também há de entrar de alguma forma,” sustenta Paula Tomás Marques, acrescentando que “a questão meta-cinematográfica, as dinâmicas de produção e de cinema, é uma coisa que vem muito desta experiência coletiva de trabalhar em cinema,” em que toda a gente está “a partilhar uma certa vulnerabilidade em frente à câmara.”

Torna-se evidente que as questões mais importantes são aquelas que se ligam à representação. Mesmo que tenham séculos. “De repente, essas perguntas já fazem parte do processo, já são meta de alguma forma, não é?” A questão, sugere uma resposta: “Ao tornar essas perguntas o centro do projeto é de alguma forma torná-lo meta, ou seja, de forma literal.” Desde logo porque a June já vai levantando no filme várias perguntas, portanto “está constantemente a questionar como é que as coisas poderiam ser feitas, e como é que ela não gosta que sejam feitas…”

“Sempre tive uma questão com os filmes, que era, tinha sempre várias camadas que queria explorar, vários ‘plots’ e ‘subplots’” diz-nos. “Na primeira longa é a oportunidade de desenvolver isso.” Isto porque até a seleção para o festival de Berlim foi uma surpresa, pois tanto poderia ser uma curta longa. Acabou por ser uma longa (curta, pois tem apenas 70 minutos). Este é um trabalho que vem de trás e que contempla um processo próprio de transformação (desde logo a própria transformação ocorrida entre ambas) após as curtas anteriores “Em Caso de Fogo” (2019), “Cabra Cega” (2021), “When We Dead Awaken” (2022) ou a mais recente “Dildotéctonica” (2023).

Uma coisa e certa, por mérito próprio, João Liberada faz já parte da história do cinema português, ousando até uma aproximação nas proximidades da missão divina do clássico de Carl Theodor Dreyer, “A Paixão de Joana D’Arc” (1928). Mesmo que se compreenda o distanciamento de Paula Tomás Marques. “Eu não concordo com essa referência. Mas percebo que seria, claramente, uma referência para o realizador do filme. Claramente. Acho que faria sentido para o universo dele.” Aliás, no campo referencial, Paula sente-se mais próxima de Pasolini. Tal como de Robert Bresson. E, sobretudo (essa é surpresa mais saborosa) de Teresa Vilaverde e de “Os Mutantes”: “é uma das minhas maiores influências de sempre. É um filme em que eu aprendi muito”. Ao que acrescenta ainda o filme “The Watermelon Woman”, de Cheryl Dunye. “Também é uma grande referência. E há até uma clara a conexão do filme da Cheryl. Aliás, quando mais penso nas minhas referências neste filme, mais vou pensando mais nessas coisas.”

Agora que o filme foi revelado ao seu público, esperamos que seja uma oportunidade de abrir novas portas e “para colaborar com dignidade em propostas dignas, juntamente com quem gostamos de trabalhar, nos acompanha e acredita no nosso trabalho. Porque este é um salto.” Temos então “Duas vezes João Liberada”, mas, como se percebe, temos ainda duas vezes o cinema convocado. E até duas vezes a identidade proclamada. Talvez por isso, o mérito da duplicação de Liberada seja sobretudo um sinal de libertação.