25 de Abril

“Singularidades de Uma Rapariga Loira” – O Véu da Cortina

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A diáfana figura de Luísa (Catarina Wallenstein), desenhada difusamente por detrás da cortina, tão escondida quanto chamativa, é o véu que tudo mascara, mas que também deixa entrever, é luminescência que se quer ainda mais velada, sedutora e forçosamente singular. É bem a força do filtro-técnica que faz uma imagem-outra: posta ligeiramente atrás da cortina, Luísa está quieta e a fugir, põe-se para ser olhada e para ser objeto do olhar de Macário (Ricardo Trêpa), que assim a olha do outro lado da rua, já nela perdido e já nela prendido, tenazmente arrebatado e irredutivelmente comprometido.

O meio-corpo de Luísa, para lá da cortina é também outra força, a de um posicionamento da câmara para cá da visibilidade máxima, para cá do necessariamente mostrável, é a escolha de um certo filmar que não pretende ser só específico e visualizador, mas antes misterioso e simbolizador da sua própria narratividade. Ao esconder-se por detrás de um véu, ao querer dar- se, ser-se olhada, mas sem permitir ser-se realmente vista, Luísa é – por força do objeto difusor que a redesenha e da câmara que está, por isso mesmo, mais longe dela – imagem do seu próprio equívoco, ela é essa figura que se olha, mas que não se vê, por artifício do realizador Manoel de Oliveira, ela é difusão-equívoco, mascarada pela cortina que a faz imagem da sua não- imagem, mas que pelo menos é, nem que seja no fim, marca de um aviso que Oliveira deixa velado: eis, pois, que ela não é o que parece. Imagem pictórica, imagem-difusão, imagem-metáfora.

Entre o vácuo que vai de uma janela para a outra, preenchido pela sonoridade cheia e alta da rumor da rua comercial, esse campo/contra- campo, de Macário a Luísa, é feito desses olhares-ânsia e de sorrisos leves do encanto e do engano, os quais são fabulações opostas de verdades e inverdades: Macário cria a imagem de um amor pleno de paixão, enquanto que Luísa perfaz a figura de um objeto de amor e desejo, construção essa que, na sua figuratividade dócil e leve, efetivamente faz supor e não verdadeiramente afirmar – no que toca à sua real singularidade. Se o amor cega, então o faz fortemente: e se é Macário o ardente apaixonado, romântico e se lançando, querendo ter, juntar e casar, é também o Macário realista, tomado pelo choque e pela percepção pragmática de que os eventos são acontecidos e as consequências palpáveis, computáveis em valores reais e dolorosamente pecuniários.

Apesar do embevecimento, Macário é homem de honra e homem de bem, como lhe diz o seu austero e forte Tio Francisco (Diogo Dória), afirmando uma postura de outros tempos e outras vontades, de decisões absolutas e engrandecedoras. À não licença para se casar, rispidamente declarada pelo tio, Macário responde com o autodespedimento abrupto, ao que o primeiro replica com a ordem de ter o salário pago até ao dia 12 desse mês. Forças e atributos, honradez e perenidades. Homens do século, mas aparentemente de outro que não aquele em que Oliveira adapta o conto queirosiano. Pois estes são homens de posição e inscrição, que se põem no mundo pela (sua) teimosa verdade e própria vontade.

Como não o empregam outras casas comerciais – receosas de ofenderem Francisco, um “amigo de vinte anos” e temerosas do “guarda- livros sentimental” – Macário aceita uma proposta para uma comissão de trabalho em Cabo Verde, onde fortemente trabalha e de onde regressa, com outra posição e “capital de habilitação”. Decisões necessárias são aqui fortes e com um fim de posicionamento pessoal e social. O pedido da mão de Luísa é feito e aceite. Mas o funesto destino – figura temática sempre presente no cinema oliveiriano – surge inexorável e o seu amigo, o Homem do Chapéu de Palha (Rogério Samora), atenciosamente engajador do trabalho em Cabo Verde, pede a Macário que lhe fie o estabelecimento comercial. Engodo nefasto, pois depressa aquele foge com mulher alheia e Macário vê-se obrigado a saldar a dívida, ficando novamente pobre e incapaz de suportar, ao contrário do vigarista, uma mulher.

Entre a possibilidade do nada e o regresso proposto a Cabo Verde, Macário apresenta-se ao tio e conta-lhe acerca da sua desdita e da decisão de retornar ao labor sobre o sol de África. Numa cena que Oliveira faz de fortitude e desamparo cómico, há toda uma lógica de ligação do familiar, do respeito e da assunção da honra. Se Francisco fora, até então, pétreo na sua oposição ao casar-se do sobrinho, toma finalmente uma atitude de benevolência e apoio claro, para espanto atónito de Macário, que não sabe realmente como se exprimir perante a nova vontade do tio, respondendo-lhe equivocadamente, dando passo à frente e passo atrás, verdadeiramente avassalado pelo fato de ter agora a autorização e bênção que vira tão pesadamente negadas. A cena é de fina comédia: o tio diz-lhe que se vá, mas de seguida que fique, afirma a canalhice do canalha que o outro é (o do chapéu de palha) e o quanto honrado Macário se mostrou e mostra; grita-lhe, mas depressa o manda passar a acrescentar “& Sobrinho” nas faturas da sua firma comercial; e ainda mais lhe vocifera: “Case-se, homem!”. A isto, Macário ouve e cala, incrédulo e sem pio de resposta, ouvindo até ao fim a lição do bem mais sabedor tio: faça-se homem e case-se, quando tiver capital; agora que não o tem, mas que já o teve e com trabalho, dele se verá fornecido. E nessa frase marcante de Francisco, logo ele lhe dá trabalho, como regressado guarda-livros: “…e lance na minha conta!”.

O modo ambivalente e desequilibrado das relações de força das duas personagens que Oliveira imprime ao andamento dramático da cena informa acerca do subtema salutar: o da necessidade de aprendizagem entre os mais experienciados e os menos experimentados. Numa lógica até bastante jocosa, o filme parece ser centrado na premência de ensinar e “dar a lição” ao jovem fogoso e alterado pelo amor: fazê-lo sofrer, fazê-lo valorizar o sacrificar-se de si pela ideia de um amar no futuro. O atarantado, mas feliz Macário, tem mais uma vez as voltas trocadas pelo tio e pelos jogos de palavras/entoação que tão depressa assustam quanto asseguram: ao “Vá-se!” autoritário que Macário pensa ser a ordem de saída, Francisco replica com o “Onde vai?” e leva-o à cozinha para o alimentar, quando já havia o sobrinho se virado, tal qual autómato, desvairado, para abalar.

Cena da mais forte e fina capacidade de interpretação e desenho de personagem, mostra ela o quanto é fundamental a utilização do ator- construtor e do ator conhecedor do seu realizador (e vice-versa). Diogo Dória é personagem-força e ator-força: novela e remata, fala e prescreve, define e afirma. Ator oliveiriano em clara formulação e imponência na figuração cinemático-teatral.

Mas Oliveira não termina ainda a sua lição de cineasta-contador: a singularidade da loira Luísa mostra-a ele nas cenas finais. Àquelas que seriam de serem felizes e calmas, Oliveira opõe o filmar do escondido e do dissimulado. Na compra do anel de noivado, a câmara de Oliveira vai do afastado da entrada na loja, exterior para interior; dos corpos inteiros para os meios-corpos ao balcão da joalharia. E ainda mais se centrando em Luísa, sozinha quando Macário e o comerciante se deslocam para fora de campo para verem brincos. A câmara firma-se nela, enquanto ela olha para os anéis que vai pegando e experimentando. Quando ela olha ligeiramente para a direita, ocorre o corte para Macário e o lojista. Este olha para o fora-de- campo, mas Macário não, ainda absorto no ato de escolha. Quando Luísa regressa e o lojista pede o pagamento do anel que Macário ainda não havia tomado, a confusão instala-se. Não se trata de dívida antiga não saldada, mas sim da mão fechada de Luísa, a qual Oliveira pormenoriza, e que guarda o anel roubado que a sua câmara escolheu não registar, mas aludir, quando com ela ficou mais alongadamente, tomando-lhe o olhar, que se sabe, por fim, trapaceiro e enganador. A mão aberta, por fim, o desgosto na face de Macário. A honra sobrepõe-se. Paga. Como se tivesse sido um breve esquecimento. Na rua, Macário diz a Luísa: “Vai-te!”, mas já não é o mesmo tom, a mesma formulação entoacional do Tio Francisco. É uma de dor, de desconcerto, de término.

E, por entre a multidão, desaparece Luísa. A ladra insuspeita, na sua singularidade de larápia. Se Oliveira nunca o mostrou com a sua câmara, sempre o aludiu com o corte e a posição seguinte. Quando Macário subiu para o escritório, por ordem do tio, aquando da visita ao armazém de Luísa e sua mãe para compra de tecido, a sua câmara cortou e deixou a cena. Adiante, na cena do jantar de almôndegas, Francisco referiu o desaparecimento de um valor avultado de tecido. A câmara não registou, Oliveira fez notar. O reflexivo recursivo importa aqui, é o valor do filmar/não filmar, mostrar/não mostrar, como forma do cinema ser cortador das suas narrações tão próprias. Se no corte de Queiroz, as páginas são voltadas para se regressar às marcas escritas de onde a singularidade subtratora de Luísa se pode ler, só na memória das imagens filmadas em conjunção com as não filmadas, as que aludem e mostram mentalmente sem dar a ver o que as às outras não se foi dado a registar, que assim se manifesta a importância do posicionamento necessário e suficiente da câmara para fazer “crer e ver” o que aquela personagem “Luísa” era: uma ladra. Lição final de um cineasta acerca do correto contar do essencial em câmara.

Num filme tão economicamente construído, ainda se enlaçam outras figuras-força do cinema oliveiriano: a de Luís Miguel Cintra, como si mesmo, na leitura pessoana, e a de Leonor Silveira, a “senhora” a quem Macário conta o (seu) amor frustrado – mais um – e que nunca nele põe o olhar. E ainda, referenciação do cinemático para o literário, a memória de Eça de Queiroz e a sua Casa, memorização do figural, real lembrança e nomeação do autor original, que assim participa no readaptar da sua fábula dos oitocentos aos 2000 da atualidade. E se o seu conto era sobretudo crepuscular e final, a adaptação de Oliveira é sobretudo irónica: entre as notas de euro e cleptomania, que lugar parece haver para as corretas atitudes tão de outro tempo, tais como a honradez límpida e a fortitude perenal? Como Oliveira parece deixar aludido, só pode cada um, acerca disso, indagar.

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