A batida é etérea, o som é pungente, é ruído no silêncio, no lugar vazio em que a velocidade das ondas sonoras se perde no infinito que se prolonga, num fim que regressa, num eco que des-ecoa, para novamente ecoar, voltar ao coração, voltar ao cérebro dormente, esquecido de si, no corpo transido, em ritmo de si mesmo, autómato de si mesmo, desencontrado no vapor interno da substância que torce e impulsiona, na dança pulsante, na poeira não assente, na noite sem dias, e nos dias que se fazem noites.
O corpo-grande é o deserto. Os corpos-pequenos são aqueles que dançam. O corpo-conjunto é a mole dos corpos que suam e criam o seu próprio nevoeiro de areia. Um véu. Que esconde. De tudo o resto. Quem dança, esquece. Determina uma linha de separação em relação ao mundo exterior. Nada entra. Nem nada sai. Fica só o bater da música, o tremer da coluna de som, o mexer do corpo. A guerra, no entanto, entra, rompe o véu. O lá-fora é o apocalipse a chegar, realmente a chegar. Mas, no deserto, esse grande-corpo que tanto separa – porque quer separar – as linhas fazem-se na fuga, no nele entrar, sem olhar para trás, nele indo e mais indo, até que ele fica a ser o corpo-areia que toma os corpos que nele se perfazem ideia-de-areia, de véu-areia, de incrustação-na-areia.
Na rave, corpos-estranhos: Luis (Sergi López) e Esteban (Bruno Núñez Arjona) procuram pelo corpo que nunca se encontrará, o de Mar, a filha mais velha, desaparecida, fugida, separada do outro lado do mar, ali no deserto para se perder e nunca, mas nunca mais se reencontrar – o filme não a verá, o filme não a quererá encontrar – com quem por ela veio, com quem tanto a procura, a ponto de se colocar para lá do véu, onde tudo se põe para se apagar do resto que não interessa. Flyers não servem para mais nada do que efetivar o apagamento, como poderá saber quem se apaga do mundo, e dele se afasta, para só ouvir batimentos e dançar, dançar sem fim, sentir, percutir, como a filha desaparecida, enfim, tão mais e tão só fugir para onde se desenha o véu que separa e quer separar.
Outra rave será a possibilidade do encontro (im)possível. Estranho também o grupo que se perfaz, em nome dessa (im)possibilidade: a caravana igualmente improvável, feita dos “ravers” em trânsito, Tonin (Tonin Janvier), Steff (Stefania Gadda), Jade (Jade Oukid), Josh (Joshua Liam Henderson) e Bigui (Richard Bellamy), estranhamente fortes e perenes, ainda que magros e mal alimentados a substâncias, rodando nas suas máquinas de ferro, atrás deles Luís e Esteban, na máquina-suburbana que parece sempre em ato de se desfazer, porque desfasada daquelas areias, mas minimamente funcional, porque necessária forma de locomoção, pois se trata de ir em direção da areia-sem-fim.
O deserto é o longo caminho, nele tudo se perde. A guerra passa a ser fundo no rádio que se desliga. O deserto é sempre inclemente. Nem lhe interessa o que acontece no outro-mundo que está para lá dele. O deserto é niilista, não tem mercê pelos pequenos-corpos que nele vagueiam, é tão aberto que os fecha infinitamente, e até ao fim do filme, não veremos nenhum deles dele se extrair, antes nele se farão carne explodida e dilacerada. Encenar é assim dilacerar, é fazer despedaçar os corpos-jovens, caídos de uma altura imensa e sobre as pedras que não mais acabam, um fundo que só se ouve enquanto um continuado ribombar que desfaz o metal e que expulsa e ainda mais destrói quem já se despedaçou. Dói no estômago. Encenar assim dói. Faz doer e faz perguntar: porquê? Porque é que tem que se ver aquele carro cair para trás, empinar-se um pouco e destruir-se, não rapidamente, mas tão lentamente, pelo som que é uma imagem logo manifesta, horror para quem sabe quem cai, terror de quem vê para lá do que se vê cair.
No deserto, ali ficaram, pedaços e tão somente pedaços. O deserto, mais uma vez, é niilista, não quer saber de quem nele anda, e de quem nele se parte. Que outra forma de encenar se pode esperar depois de tanto fazer agoniar? O mesmo cinema de choque, o mesmo cinema feito de murros no estômago, feito de encenar o horror do real que ultrapassa absolutamente o irreal dançante da ilusão dançada que não acalma, pois não há substância dopante que possa adormecer os sentidos e os membros, a mente, o corpo que quer sentir paz quando ele, também ele, explode, despedaça-se igualmente e cai enquanto carne que é, partes de carne do que, fração de segundo antes, foi corpo-dançante? Laxe encena o filme de horror, nada mais, horrorize-se quem se horrorize, cinema para tal feito, terá que assim ser aguentado. Caminhar pela linha de minas é uma chance irrevogável, só vê quem quer ver: um sobrevive, foi a direito, outro morre, foi a direito também. O deserto é niilista. Pode ser que, afinal, o cineasta também seja ele, niilista? Diz-se que o ato de encenar não é, de modo algum, neutral, é antes e acima de tudo, criador de uma política de ver e fazer ver. Mesmo que seja uma de fazer ver o quanto o horror é uma expressão vívida do real. Dolorosa, imensamente dolorosa. De um filme que começou com o bater do coração, com o percutir da música, com o bombear da coluna, com os olhos fechados, o que fica no fim são os olhos muito abertos, o espanto do horror e a des-razão dos porquês aos quais o cineasta não quer sequer responder.
A viagem continua, ainda não saíram do deserto, os que sobram, a guerra algures para lá do seu véu, enfim, continuando…


