A memória histórica é dos maiores valores que devemos preservar. Uma forma de tornar essa memória eficaz com o passar das gerações é perpetuar os factos e as ficções baseadas em acontecimentos, através do cinema.
Depois de quase 40 anos de censura e muitas limitações onde quase só a produção de propaganda vingou, Portugal teve o cinema aprisionado nos anos que deviam ter sido os de fulgor e crescimento. No entanto, esses filmes começaram a sair em liberdade logo no dia 26 de abril de 1974 com inúmeras estreias até aí impedidas. O crescimento e democratização da televisão ajudaram a dar alguns pequenos passos. Chegados a 2020, os desafios colocam-se ainda pela incapacidade de se ter conseguido gerar uma indústria. Apesar de alguns bons exemplos de trabalho emergente que merece todo o mérito, esses filmes assentam em brio e qualidade individual e não num plano coletivo. O desafio agora é o futuro pós-pandemia, tendo em conta que os apoios escassos que o governo está a colocar na área da cultura já eram insuficientes antes e não tem havido sinais de uma mudança de conduta.
Esta seleção, ordenada de forma cronológica, de documentários e obras de ficção, tanto em formato de curtas, como longas-metragens, obedece a um só critério, que é o tema em si: o 25 de Abril de 1974 enquanto momento histórico de transformação social, política e cultural e as suas consequências.
– As Armas e o Povo (1975), Glauber Rocha
O período que vai do 25 de Abril ao 1.º de Maio de 1974, ilustrando a ação militar e a movimentação de rua, o desmantelamento do “aparelho social e político do fascismo”. Paralelamente, analisam-se os principais eventos que, a partir de 28 de Maio de 1926, contribuíram para a consolidação da máquina corporativa inspirada por Salazar, destacando as atitudes de resistência popular ou oposição armada ao longo de quarenta e oito anos.
– Torre Bela (1975), Thomas Harlan
Torre Bela, uma herdade de dois mil hectares pertencente ao Duque de Lafões, foi ocupada em 23 de abril de 1975 pelos trabalhadores, com o objetivo de procederem à exploração agrícola de produtos de primeira necessidade. Em resultado de um contacto direto, ao longo de cem dias, este exemplo de luta operária (os seus avanços, contradições, incertezas e resistência) ilustra ainda os passos que levaram à constituição da cooperativa, assinalando o apoio decisivo prestado pela Polícia Militar, no âmbito das conquistas salvaguardadas pelo Movimento das Forças Armadas.
– Continuar a Viver (1976), António da Cunha Telles
Num registo que cruza a atmosfera de militância que se vivia na época com um olhar mais etnográfico, esta longa-metragem fala-nos da experiência vivida pela comunidade piscatória da Meia Praia, regada com a canção de Zeca Afonso. Entre 74 e 76, depois da Revolução dos Cravos, vive-se no local uma experiência exemplar. Com o apoio do SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório), as velhas casas são substituídas por moradias de pedra e os habitantes lançam-se na criação de uma cooperativa de pesca. Em consequência do desgaste que um projeto de tal envergadura implica, surgem dúvidas e contradições reforçadas pela inexistência de uma política socioeconómica de proteção às camadas mais exploradas.
– Cravos de Abril (1976), Ricardo Costa
Bem cedo, na manhã do dia 25 de Abril de 1974, Ricardo Costa é acordado pelo seu amigo e colaborador em atividades editoriais, Ilídio Ribeiro, que lhe anuncia estar em pleno curso uma revolução. Em casa tem guardada uma máquina de filmar Paillard-Bolex de 16mm, com motor de corda, e duas bobines de filme negativo a cor Eastman, de 120 metros. Metem-se no carro, ligam a telefonia e acabam por sintonizar uma estação emissora da GNR, que transmite ordens aos agentes sobre o movimento das tropas envolvidas no golpe militar. Dirigem-se para a Praça do Comércio, onde os revoltosos concentraram carros de combate. É aí que Ricardo Costa começa a filmar. Na rua ainda não há gente nem outras câmaras, à exceção das de um ou dois fotógrafos profissionais, um deles Eduardo Gageiro.
– Cenas da Luta de Classes em Portugal (1976), Robert Kramer
Explorando o momento pós-revolucionário do ponto de vista de um outsider, filmado por dois americanos, consegue mostrar a confusão que se seguiu e a forma como os interesses do mercado se sobrepuseram e desviaram o processo revolucionário para criar uma nova classe política burguesa de direita, sobre o disfarce do socialismo. Consegue ver-se nesta sequência de revolução e subsequente reação a origem dos problemas políticos atuais.
– Revolução (1976), Ana Hatherlty
Um filme original que regista cartazes, murais e pinturas políticas das ruas de Lisboa. Filmado em Super 8 e posteriormente ampliado para 16 mm, estreou na Bienal de Veneza em 1976.
– Deus, Pátria, Autoridade (1976), Rui Simões
A partir do célebre discurso de Salazar feito em 1936, o filme procura de forma didática mostrar os alicerces do regime fascista durante os 48 anos da sua existência até ao 25 de Abril de 1974. Uma desconstrução da ideologia fascista, através de três dogmas fundamentais assinalados no discurso de Salazar, em 1936: “Não discutimos Deus e a virtude, não discutimos a pátria e a nação, não discutimos a autoridade e o seu prestígio”.
– Bom Povo Português (1981), Rui Simões
Um documentário histórico que descreve a situação social e política de Portugal entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975 “tal como ela foi sentida pela equipa que, ao longo deste processo, foi ao mesmo tempo espectador, ator, participante, mas que, sobretudo, se encontrava totalmente comprometida com o processo revolucionário em curso (PREC)”.
– Um Adeus Português (1986), João Botelho
Anos depois da morte do seu filho na Guerra Colonial Portuguesa, um casal de idosos viaja até Lisboa para começar uma nova vida e reencontrar sua antiga nora, apesar das memórias dolorosas do passado.
– Non, ou A Vã Glória de Mandar (1990), Manoel de Oliveira
Nos finais da guerra colonial, um grupo de soldados avança pelo mato. Entre eles, o alferes Cabrita, licenciado em História, que vai percorrer outras memórias. De Viriato e da luta de resistência ao domínio romano, não esquecendo o inevitável desastre africano, Manoel de Oliveira passa em revista as maiores catástrofes militares de Portugal.
– Portugal 74-75 – o Retrato do 25 de Abril (1994), RTP (Joaquim Furtado, José Solano de Almeida, Cesário Borga e Isabel Silva Costa)
Documentário em que são abordados cronologicamente os principais acontecimentos que marcaram o país e a sociedade portuguesa nos anos de 1974 e 1975. A decadência do regime Marcelista, a Revolução do 25 de Abril de 74, o período conturbado do Processo Revolucionário Em Curso (PREC), o fracasso do Golpe de 25 de Novembro de 75. Um programa produzido com base em imagens de arquivo, intercaladas com depoimentos de alguns dos intervenientes nos acontecimentos dessa época, para assinalar os 20 anos da Revolução dos Cravos.
– Cinco Dias, Cinco Noites (1996), José Fonseca e Costa
Uma adaptação ao cinema do romance homónimo de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal, sobre a odisseia de um jovem em fuga que nos finais dos anos 40 se vê obrigado a passar a fronteira a “monte” na companhia de um contrabandista.
– Outro País (1999), Sérgio Tréfaut
A Revolução Portuguesa vista através dos olhares de alguns dos mais importantes fotógrafos e cineastas que testemunharam o evento. Um documentário que reúne arquivos históricos excecionais.
– A Hora da Liberdade (1999), Joana Pontes
Uma recriação produzida para televisão pela SIC, em 1999, onde se retratam os diversos acontecimentos dos momentos-chave do 25 de Abril de 1974.
– Cinema – Alguns Cortes: Censura (1999), Manuel Mozos
A partir de várias horas de cortes realizados pela Comissão de Censura durante as décadas de cinquenta e sessenta conservados pela Cinemateca, é um filme de montagem através do qual se dá a ver a violência da censura enquanto negação da imagem.
– Capitães de Abril (2000), Maria de Medeiros
Na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, a rádio emite uma canção proibida: “Grândola, Vila Morena”. Poderia apenas ter sido a insubmissão de um jornalista rebelde mas, na realidade, é um dos sinais programados do golpe de estado militar que vai transformar completamente o país, sujeito à ditadura do Estado Novo durante várias décadas, e o destino das colónias portuguesas em África e em Timor-Leste.
– 25 de Abril, Uma Aventura para a Democracia (2000), Edgar Pêra
Documentário com base nos arquivos do 25 de Abril. É um filme sobre o fim do fascismo e o 25 de Abril, visto a partir das ruas e dos rostos das pessoas. Mais do que mostrar a revolução militar, revela a adesão popular ao movimento. Imagens e sons do passado (a ditadura e a libertação) misturam-se com imagens e sons do momento presente do documentário (manifestações de apoio à independência de Timor).
– Amanhã (2004), Solveig Nordlund
Nuno, um rapaz de nove anos, foge de casa na noite de 24 de Abril de 1974. Está farto das discussões entre a mãe e o padrasto e decide ir ter com o seu pai, embora não saiba onde o pai mora. Para se esconder da polícia, esconde-se num grande edifício que está a ser abandonado à pressa. Partem carros e pessoas em grande velocidade, ninguém dá por Nuno. Só fica ele com um cão de guarda. A noite já vai tarde e Nuno e o cão adormecem abraçados. Acordam de manhã com gritos vindos da rua. Nuno pensa que é a sua mãe à sua procura e corre à janela ver o que se passa. A rua está cheia de gente. Há tanques e soldados. É o 25 de Abril. E Nuno está convencido de que foi a sua mãe que fez a revolução só para o encontrar.
– Cartas a Uma Ditadura (2006), Inês de Medeiros
Uma centena de cartas, escritas por mulheres portuguesas em 1958, foram encontradas por acaso por um alfarrabista. As cartas respondiam a uma circular enviada por um Movimento de Apoio à Ditadura do qual não há qualquer referência em qualquer outra fonte histórica. A circular original nunca foi encontrada, mas pelas respostas percebe-se que era um convite para que as mulheres se mobilizassem em nome da paz, da ordem e, sobretudo, em defesa de António de Oliveira Salazar.
– 48 (2010), Susana Sousa Dias
16 testemunhos de pessoas que foram interrogadas pela PIDE, sobrepostos por fotografias a preto-e-branco que foram tiradas na época pela própria polícia.
– Casas Para o Povo (2010), Catarina Alves Costa
O filme narra a história do SAAL, Serviço de Apoio Ambulatório Local (1974 – 1976), um movimento lançado após a revolução por um grupo de arquitectos que respondia à luta de rua dos moradores pobres que no Verão Quente de 1974 gritavam: “Casas, Sim! Barracas, Não!”.
– Linha Vermelha (2012), José Filipe Costa
Em 1975, a equipa de Thomas Harlan filmou a ocupação da herdade da Torre Bela, no centro de Portugal. Três décadas e meia depois, “Linha Vermelha” revisita esse filme emblemático do período revolucionário português: de que maneira Harlan interveio nos acontecimentos que parecem desenrolar-se naturalmente frente à câmara? Qual foi o impacto do filme na vida dos ocupantes e na memória desse período?
– As Ondas de Abril (2013), Lionel Baier
Em abril de 1974, dois jornalistas da rádio suíça são enviados a Portugal para fazer uma reportagem “positiva”. Vagueiam pela província portuguesa quando irrompe a Revolução dos Cravos. Decididos a acompanhar os eventos em primeira mão, rumam a Lisboa na sua carrinha Volkswagen. Deste modo, aproveitando o facto de estarem no momento certo e no lugar certo, fazem a reportagem das suas vidas sobre o espírito de liberdade do povo português. Um filme realizado pelo suíço Lionel Baier.
– A Cantiga Era Uma Arma (2014), Joaquim Vieira
Com o 25 de Abril e os meses que se seguiram, a música “de intervenção” ou “de protesto” atingiu o seu apogeu. Músicos e poetas puseram-se ao serviço dos novos tempos revolucionários e fizeram-se à estrada, de norte a sul do país, para levar a toda a população a mensagem libertadora anunciada pelos capitães no “dia inicial inteiro e limpo”. Mensagem que cada um interpretava à sua maneira, dedicando-se de corpo e alma a difundi-la apesar das condições precárias em que se organizavam os espetáculos musicais.
– Cartas de Guerra (2016), Ivo Ferreira
António vê a sua vida brutalmente interrompida quando é incorporado no exército português para servir como médico numa das piores zonas da guerra colonial: o Leste de Angola. Longe de tudo o que ama, escreve cartas à mulher à medida que se afunda num cenário de crescente violência. Enquanto percorre diversos aquartelamentos, apaixona-se por África e amadurece politicamente. A seu lado, uma geração desespera pelo regresso. Na incerteza dos acontecimentos de guerra, apenas as cartas o podem fazer sobreviver.