Maurício Squarisi: “Sou daqueles que defendem que a arte só é possível com liberdade e experimentação, ainda mais no caso da animação”

Num encontro descontraído, relembrámos com Maurício Squarisi os 50 anos de história e resistência do colectivo que fez de Campinas um polo da animação no Brasil e no mundo
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Foi em 1975 que tudo teve início, num atelier modesto em Campinas, no interior de São Paulo, quando Wilson Lazaretti ousou traçar os primeiros riscos no universo da animação. Nesse mesmo ano, o Conservatório Carlos Gomes convidou-o a ministrar aulas a miúdos que mal sabiam segurar um lápis, mas que cedo viriam a contribuir para desenhar o que viria a tornar-se o Núcleo de Cinema de Animação de Campinas.

Com o decurso do tempo, o Núcleo despediu-se do carácter quase improvisado que o marcara no princípio e estabeleceu-se no Teatro Castro Mendes, congregando, para além das crianças, uma heterogénea comunidade de artistas plásticos, ceramistas, poetas e ilustradores que até então nunca haviam cruzado os seus caminhos num mesmo espaço.

Maurício Squarisi, que ingressou em 1979 como um jovem entusiasta, jamais abandonou este convívio, tornando-se, ao lado de Lazaretti, rosto e memória viva desta epopeia.

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Wilson Lazaretti e Maurício Squarisi (1997) – Reprodução: Fausto Junior.

Quase cinco décadas volvidas, a dupla percorreu o Brasil num trajecto que assemelha um mapa de digressão incessante, passando pelo Pantanal, Amazónia, praias do Nordeste e centros urbanos saturados. Em cada paragem realizaram oficinas que já somam mais de 2.800 sessões, quase sempre com o mesmo propósito, transformar o traço inseguro da criança em imagem em movimento, fotograma a fotograma, num écran que acolhe o inesperado e o improviso.

Deste périplo assomou um acervo que ultrapassa os 300 filmes e um reconhecimento que ultrapassou fronteiras, conquistando prémios em festivais nacionais e internacionais e garantindo um lugar entre os cinco colectivos mais antigos ainda em actividade no mundo da animação.

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Maurício e Wilson numa das oficinas que levam às escolas (20??) – Divulgação

Para além do ensino da técnica, o Núcleo consolidou uma filosofia própria da animação, concebendo-a como uma linguagem de expressão aberta a todos — crianças, jovens e adultos. Desenvolveu-se aí uma perspectiva única sobre a arte do movimento, que respeita as raízes tradicionais da animação, mas privilegia uma abordagem acessível, intuitiva e profundamente ligada à experiência humana.

O trabalho prossegue, com um banco de projectos dedicados à educação, ecologia e cidadania. O Núcleo mantém-se firme na procura de novos rumos, captando recursos e explorando oportunidades para levar a animação a um número cada vez maior de pessoas.

Em 2025, o Núcleo de Cinema de Animação de Campinas celebra meio século de existência. Por essa ocasião, eu e Felipe Passos Gal sentámo-nos para ouvir Maurício Squarisi recordar os dias em que tudo não passava de um sonho sem mapa e a maneira como esse sonho, nascido num estúdio minúsculo, continua a reinventar-se:

Como a animação no Brasil evoluiu ao longo destes 50 anos e de que forma o Núcleo acompanhou e contribuiu para essa transformação?

O Kaiser, de Álvaro Moris, também conhecido como Sete”, é considerado o primeiro desenho animado brasileiro. Por isso, podemos afirmar que a animação no Brasil tem início em 1917. Temos, portanto, pouco mais de 100 anos de história da animação. Quase metade desse período conta com a participação do Núcleo de Cinema de Animação de Campinas. Se falarmos dos filmes de longa-metragem, o Brasil produziu, no século passado, o seu primeiro longa de animação: Sinfonia Amazónica”, de Anélio Latini, em 1953. A partir daí, ao longo do século XX, o país passou a produzir, em média, um longa de animação por década.

Já no século XXI, muito em consequência do avanço da tecnologia, a produção intensificou-se. Há relatos de que, neste momento, estão em produção mais de 40 longas de animação no Brasil. Quanto à sobrevivência dos animadores no século XX, é importante referir que a maioria conseguia exercer o seu ofício através da publicidade, produzindo filmes publicitários animados. No entanto, essa actividade estava concentrada nos grandes centros urbanos, como São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Recife — principalmente nas capitais.

No caso do Núcleo de Cinema de Animação de Campinas, nunca tivemos interesse em actuar na área da publicidade. Por essa razão, tivemos de procurar outras formas de obter retorno através do nosso trabalho com animação. Hoje, ao olhar para trás, percebo que havia uma tendência natural para a área da educação. Fomos desenvolvendo maneiras de levar a animação às escolas. Começámos por fazer projecções: levávamos um projector de 16 mm, com as bobinas dos filmes que nós próprios produzíamos, e exibíamos nas escolas — que, por sua vez, pagavam por essas sessões. A partir dessas experiências, passámos a desenvolver oficinas de animação.

Iniciámos com oficinas de brinquedos ópticos e, mais tarde, oficinas de produção de filmes animados. Actualmente, continuamos a realizar estas oficinas nas escolas, com enfoque na produção. Foi desta forma que participámos na história da animação brasileira: acompanhando o que se fazia no país, mas também contribuindo activamente com a nossa própria produção.

Quais foram os momentos mais desafiadores ou de crise para o Núcleo durante estes 50 anos, e como é que a equipa superou esses obstáculos?

Do ponto de vista financeiro e material, o Núcleo sempre viveu em crise. Por vezes, crises mais profundas; noutras alturas, crises mais suaves. O que acontece é que o artista independente, ou, no nosso caso, o animador autoral, não costuma ser movido por grandes ambições materiais. Por isso, levamos uma vida modesta. Mesmo sem grandes ganhos, conseguimos satisfazer, sobretudo, os nossos anseios artísticos. Como já referi, nunca actuámos na área da publicidade. Sempre nos orientámos para a educação, levando filmes e oficinas às escolas.

Houve períodos em que essa abordagem deu melhores resultados. Conseguimos, por exemplo, obter alguns patrocínios. No passado, é importante lembrar, não existiam leis de incentivo. Quando uma empresa patrocinava um projecto, fazia-o unicamente por questões de marketing, e nós não tínhamos nada para oferecer em termos de retorno promocional. Assim, no período anterior às leis de incentivo, o Núcleo, tal como muitos artistas independentes, praticamente não dispunha de patrocínios. Quando essas leis começaram a surgir, passámos também a tentar aceder a esses apoios, mas deparámo-nos com uma forte concorrência, com inúmeros artistas a disputar os mesmos recursos.

Em alguns casos, tivemos a sorte de ver projectos seleccionados. Porém, no campo da produção autoral, o patrocínio foi raro. Apenas mais recentemente conseguimos algum apoio. No que respeita às oficinas, estabelecemos uma parceria com a Direção Cultura. São eles que formatam os nossos projectos, os inscrevem nas leis estaduais e federais e procedem à captação de recursos. Dessa forma, conseguimos levar as oficinas às escolas sem qualquer custo para estas, ao mesmo tempo que garantimos a nossa remuneração. Foi assim que conseguimos contornar muitos dos períodos de crise.

Em determinados momentos, também conseguimos financiamento para filmes autorais através de concursos públicos ou por meio da utilização de mecanismos de incentivo ao nível federal, estadual e até municipal. Olhando para trás, ao longo destes 50 anos, conseguimos ultrapassar os principais obstáculos, sobretudo os de ordem financeira, criando caminhos alternativos para tornar a animação viável, fora dos modelos tradicionais, como a publicidade.

Qual foi a experiência mais marcante para si durante estes 50 anos de história do Núcleo, tanto no aspecto pessoal como profissional?

Acho que há muitas experiências marcantes. No caso do artista, as dimensões pessoal e profissional confundem-se bastante. Poderia citar várias, tanto na produção de filmes de autor como nas oficinas. Uma experiência que considero especialmente significativa foi um trabalho que realizámos com educadoras e educadores de Campinas. Tal como em grande parte das oficinas, começámos com uma primeira etapa de estudo. Esta oficina, em particular, decorria ao longo de um ano inteiro, com encontros semanais, o que nos permitiu aprofundar cada fase com mais tempo.

Estudámos bastante, assistindo a filmes e debatendo obras de animação, tanto produzidas pelo Núcleo como outras independentes e de autor. Um filme que marcou profundamente o grupo foi A Velha a Fiar”, de Humberto Mauro, que considero talvez o primeiro videoclip brasileiro. A maioria do grupo era composta por professoras — havia apenas um ou dois professores. Inspiradas pelo filme, decidiram recriar A Velha a Fiar” em desenho animado. Trabalhámos durante todo o ano e o filme ficou concluído.

O resultado foi muito positivo. Fui representar o filme no Festival de Vitória, no Espírito Santo. Na sessão em que seria exibido, percebi que Nelson Pereira dos Santos estava sentado ao meu lado. Quando fui chamado ao palco para falar sobre o trabalho, disse: “Este filme foi inspirado num mestre do cinema brasileiro, Humberto Mauro. E dedico a sessão de hoje a outro mestre que se encontra nesta sala: Nelson Pereira dos Santos.”

Após a exibição, voltei a sentar-me ao lado dele. O Nelson olhou para mim e disse: “Este filme vale mais do que um grande prémio.” Foi uma honra imensa ouvir isto. Na altura, no início dos anos 2000, os filmes ainda eram exibidos em película. Enviei alguns trabalhos para a selecção do FICI — Festival Internacional de Cinema Infantil — organizado pela Carla Camurati. Alguns dos nossos filmes existiam em película, outros não. A Velha a Fiar” foi seleccionado, mas fora finalizado em vídeo.

Expliquei que não tínhamos uma cópia em película. A Carla gostou tanto do filme que decidiu custear a sua transferência, o que era um processo bastante caro. Fiquei extremamente satisfeito e orgulhoso com isso, sobretudo por se tratar de um trabalho realizado numa oficina com educadoras. Algum tempo depois, a equipa do festival voltou a contactar-nos pedindo autorização para fazer 30 cópias em película, pois o filme iria abrir todas as sessões do festival. Naturalmente, autorizámos. Alguns meses mais tarde, quase um ano, voltaram a contactar-nos pedindo permissão para produzir 250 cópias em VHS, destinadas à distribuição em escolas.

Foi um resultado excepcional para um filme criado numa oficina, de forma despretensiosa, por educadoras e educadores que estavam ali a aprender e a experimentar a linguagem da animação. Este é apenas um exemplo de um momento marcante. Há muitos outros que podemos partilhar noutras ocasiões.

Com uma trajectória de 50 anos, como é que vê a relação do Núcleo com as novas gerações de animadores?

Bem, a relação do núcleo, lembrando que quem conduz o núcleo principalmente somos o Wilson Lazaretti (Wal) e eu, Maurício, durante estes 50 anos tem sido marcada pela ligação constante com as novas gerações, pois trabalhamos muito com crianças.

Estimula-se nelas a animação de autor, o desenho animado autoral. Os alunos e alunas que passam pelas nossas oficinas podem vir a ser animadores ou animadoras no futuro, ou consumidores de animação muito mais conscientes, que valorizam a animação autoral, que exige qualidade e não se deixa levar pela animação comercial e industrial.

Por isso, há várias animadoras e animadores ativos na animação brasileira hoje que passaram pelo Núcleo de Cinema de Animação de Campinas. Para além disso, mantemos contacto com as novas gerações, participando em mostras, festivais e exposições onde elas também marcam presença.

Um bom exemplo acabou de acontecer: regressei há pouco de Lisboa, onde houve algumas sessões em homenagem aos 50 anos do Núcleo. Uma dessas participantes foi uma jovem brasileira que estudou em Campinas e depois seguiu para o Porto, para continuar os seus estudos e agora trabalha na animação europeia. Ela diz identificar-se muito com a animação que promovemos. Estimulamos a animação autoral, a criação do próprio traço, sem se deixar influenciar pela animação industrial e comercial, que procura padronizar o artista, retirar-lhe a arte e transformá-lo num robô sem qualquer sentimento.

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Equipe do Núcleo na MONSTRA (2025) – Divulgação

Sinto-me muito feliz e tenho muita esperança quando conheço pessoas como a Karina, que acabei de conhecer em Lisboa. Aqui em Campinas e em São Paulo há muitos exemplos, assim como por todo o Brasil. A nossa relação com as novas gerações é de troca constante: transmitimos o que sabemos e aprendemos bastante com elas.

Alimento sobretudo a minha esperança ao ver estes jovens, estas crianças de vinte e poucos anos, a entrar no campo da animação com uma firmeza autoral muito clara.

Na sua opinião, o que é que torna a animação brasileira única e especial?

O que torna a animação brasileira única e especial é precisamente a brasilidade, a originalidade do animador ou da animadora que está a animar. Esse artista deve beber o máximo da cultura brasileira e, depois, ao trabalhar, desenhar ou animar, exteriorizar essa cultura. Daí a importância da animação autoral, onde o autor se expressa, partilhando aquilo que vive e a sua própria cultura. Um grande exemplo do que fazemos no núcleo é o trabalho com comunidades indígenas. Muitas vezes, a questão indígena é tratada em filmes de animação, mas não pelos próprios indígenas, e sim por animadores de grandes cidades que dominam a técnica e produzem um filme no tempo de um animador que não é indígena.

Nas nossas visitas a comunidades indígenas e nas oficinas que promovemos, o Wal fabrica os equipamentos — como a mesa de filmagem e de animação, entre outros — e deixamos esses equipamentos na comunidade para que os indígenas possam desenvolver a sua própria animação, com uma abordagem especial e única, baseada na sua cultura, que é muito rica e tem muito a dizer. Então, o que torna uma animação única e especial é a expressão da cultura de quem está a animar.

Como é que o Núcleo lida com a questão da inovação num campo artístico tão técnico e tradicional como a animação?

Um dos maiores riscos da inovação tecnológica é a arte ficar ao serviço da tecnologia. Em muitos trabalhos de animação percebe-se isso, quando o artista é dominado pela tecnologia. No núcleo, usamos a tecnologia como uma ferramenta para aquilo que queremos transmitir, para a mensagem ou para a expressão que queremos dar forma no desenho animado. Por isso, a tecnologia vem para complementar o que precisamos. Por exemplo, até hoje o Wal e eu desenhamos no papel. Desenhamos no papel e fazemos tudo nas mesas de luz, que o próprio Wal fabrica. A mesa de luz que eu uso tem quase 50 anos e foi feita pelo meu pai, que era cineasta. Foi nessa mesa que desenhei e animei todos os filmes que fiz. Esta é a parte artesanal da animação. Aliás, a animação é artesanal em toda a sua essência. Mesmo a animação computorizada não deixa de ser artesanal, porque é preciso fazer tudo quadro a quadro. Depois de desenhar as figuras e a animação no papel, digitalizamos esses desenhos com um scanner. A partir daí, tudo é feito com tecnologia digital. Nas oficinas, as crianças, adultos ou adolescentes desenham em papel, utilizando as tradicionais mesas de luz, depois digitalizam os desenhos ou os fotografam com o telemóvel, e a conclusão é feita em digital, sendo o produto final digital. Assim, conciliamos o artesanal com o digital.

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Wilson Lazaretti em uma das oficinas do Núcleo no projeto Curtas de Animação (2025) – Divulgação

Quais são os maiores desafios ao ensinar animação, especialmente a crianças?

Ainda não sei bem se ensinamos animação, porque numa oficina de animação, que é o formato que usamos, o que acontece é uma troca de conhecimentos. Partilhamos o que sabemos sobre animação e muitas vezes, ou na maioria das vezes, talvez sempre, também aprendemos outras coisas.

Acredito que o processo educativo só funciona se houver essa troca, em que ambos os lados aprendem, tanto quem orienta como quem aprende. Ambos trocam conhecimentos e aprendem, independentemente da idade. Aliás, creio que com as crianças isso acontece com menos dificuldades.

No nosso trabalho de animação e nas oficinas, o que mais se destaca é o desenvolvimento da identidade gráfica própria. Cada um deve descobrir, se ainda não conhece, ou desenvolver a sua identidade gráfica, o seu próprio estilo de desenho. Por isso, numa oficina ou num filme autoral, ou num filme produzido colectivamente numa oficina, evitamos qualquer cópia exterior. Queremos que a criança ou adulto que esteja a fazer o trabalho ponha o seu traço pessoal na obra.

Isto é, como já dissemos, o que torna uma animação autoral especial e autêntica. Assim, no trabalho com as crianças, o que mais estimulamos é o desenvolvimento da sua identidade gráfica. E não só no grafismo, mas também na criação do guião, incentivando a incluir temas ligados à sua própria vivência. Queremos que coloquem no filme coisas que experienciaram ou que pretendem experienciar, para que todo o trabalho seja autoral. Inclusive, nas oficinas, a banda sonora é criada pelos participantes, mesmo nas oficinas com crianças, que são a maioria das que fazemos.

Por isso dizemos que aquilo é um filme colectivo e autoral, porque tudo é criado por aquele grupo: o guião, o grafismo, a animação e a banda sonora.

De que forma é que o Núcleo incentiva a experimentação e a liberdade criativa dentro de um campo artístico que, muitas vezes, exige técnicas precisas e bem definidas?

Sou daqueles que defendem que a arte só é possível com liberdade e experimentação, ainda mais no caso do cinema de animação. Portanto, ao criar um argumento, não se pode trabalhar com barreiras ou limites. É preciso ter a maior liberdade possível, se a intenção é fazer uma obra de arte e arriscar. Acredito que o processo só se torna realmente interessante para quem, como nós, realiza tantas oficinas, quando sabemos que cada uma será diferente da outra. Isso acontece porque não sabemos como aquilo vai terminar. Estamos a arriscar. Entregamos nas mãos do grupo e confiamos no que poderá surgir. Damos total liberdade para que experimentem, criem e cheguem a um produto final que seja um filme de animação colectivo e de autor, no caso das oficinas. E nos nossos filmes de autor, o princípio é o mesmo. Não faz sentido começar um filme utilizando apenas aquilo que já conheço da animação, sem nenhuma novidade ou experimentação. Cada novo filme — já fiz mais de vinte curtas e uma longa — exige ideias novas, formas diferentes de animar e, principalmente, liberdade total para criar.

A animação é frequentemente vista como uma arte lúdica e infantil. Como é que o Núcleo trabalha para desmistificar essa ideia e torná-la acessível a diversas faixas etárias?

Foi a indústria que criou essa ideia de que a animação é algo infantil, lúdico, engraçadinho. Isso foi uma determinação da indústria para ser mais fácil vender rebuçados, champôs, licenciar personagens nos potinhos de iogurte, coisas do género. No núcleo, nós não seguimos esse caminho. Quando fazemos animação, não estamos preocupados se o filme será para um público infantil, adulto ou adolescente. O autor preocupa-se em exprimir aquilo que sente, aquilo que o motiva a criar uma obra de arte. Portanto, a definição do público não é relevante nesse momento. Só depois de o filme estar concluído e começarmos a exibi-lo é que percebemos que determinado público se identifica mais com ele. Muitas vezes, são pessoas que têm relação com a temática tratada no filme. Para quem faz animação autoral ou artística, definir previamente o público não é um critério para criar. Na indústria, sim: fazem estudos, analisam o que será mais eficaz para atingir determinado público e vender determinado produto. A animação autoral tem vários ónus: ganha-se menos, há menor aceitação. Mas uma das grandes vantagens é precisamente essa liberdade de não ter de procurar agradar a grandes públicos, nem de ser obrigado a criar um filme com o objectivo de vender produtos.

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Maurício Squarisi em uma das oficinas realizadas em Hortolândia/SP (2025) – Divulgação

Como é que a animação pode servir como uma ferramenta de reflexão social e política, como se pode observar em diversos projectos do Núcleo?

Na forma de trabalho do núcleo, acredito que o processo é muito mais importante do que o resultado. Por exemplo, quando se fala em reflexão social e política, nós já estamos a realizar um movimento social e uma acção política ao desenvolver uma oficina com crianças da periferia das cidades. Ali, está-se já a levar a essa criança uma ferramenta de comunicação que lhe proporcionará formas de se exprimir através de um dos instrumentos que mais pessoas alcança: o cinema de animação. É por isso que digo que o próprio processo já constitui, em si, um movimento social e político. O resultado dos filmes entra noutro plano. Quando o argumento, no caso das oficinas, é criado colectivamente pelo grupo, ele manifesta questões que os participantes carregam consigo, inquietações que estão a viver — incluindo de natureza social e política. Vejo isso como uma forma clara de expressão de cidadania. Um exemplo disso é quando realizamos uma oficina numa comunidade indígena: estamos a levar uma ferramenta de comunicação que será apropriada por eles para desenvolverem o seu próprio movimento social e político.

Nos últimos anos, a animação digital tem ganhado destaque. Como o Núcleo se adapta a essas novas tecnologias, sem perder a essência da animação tradicional?

Sim, a tecnologia digital tem vindo a ganhar destaque. As novidades estão sempre em evidência, mas cabe ao artista avaliar se aquilo que vai produzir, se aquilo que tem para dizer, se a expressão que pretende colocar no seu desenho animado está em consonância com o que a tecnologia está a trazer de novo. Assim, encaramos as tecnologias como ferramentas ao serviço da ideia que queremos transmitir. Naturalmente, há sempre novos programas de edição que podem ser melhores, mas a criação propriamente dita, pelo menos no núcleo, continuamos a fazê-la com lápis e papel. Posteriormente, digitalizamos os desenhos e finalizamos em formato digital. Portanto, quanto à questão de como não perder a essência da animação tradicional, penso que passa precisamente por isso: avaliar até que ponto nos interessa incorporar novas tecnologias no trabalho que estamos a desenvolver — e se essas inovações são, de facto, necessárias.

Como você acredita que o Núcleo pode contribuir para a preservação e valorização da história da animação brasileira nos próximos anos?

Bom, contribuir para a preservação e valorização da história brasileira é o que temos vindo a fazer ao longo destes 50 anos em que temos feito animação. Se olhar para a nossa filmografia, há muitos filmes que abordam questões históricas.

Em “O Tunico”, que é a biografia de Carlos Gomes, “Os Melhores Amantes Bebem Café”, que discute a Revolução de 1932, “Os Riachos do Príncipe”, que é uma biografia de Guilherme de Almeida, e por aí fora — temos muitos filmes a tratar de temas históricos.

Agora, acho que o mais importante ao abordar um tema histórico é perguntar o que tenho a ver com esse tema. Por exemplo, fiz um longa-metragem sobre a história do café. O que me levou a fazer esse filme foram questões internas. Para começar, estou aqui porque o meu avô veio de uma colónia italiana em Brodowski, onde cultivava café.

Tudo na minha vida tem a ver com o café e isso levou-me a fazer um filme sobre o tema. O que quero dizer é que não faço um filme sobre algo que não tenha vivido ou que não esteja ligado à minha experiência pessoal.

Quanto à preservação e valorização histórica da animação brasileira nos próximos anos, isso começa com a preservação do nosso próprio arquivo. E estamos a cuidar disso. Aliás, estes 50 anos têm servido muito para esse propósito.

A Rebeca, por exemplo, tem-se dedicado ao nosso arquivo, trabalhando na recuperação e digitalização de filmes que ainda não estavam digitalizados e, principalmente, na organização do arquivo. Em breve, teremos um catálogo com tudo o que produzimos, onde está e em que estado se encontra.

Esta é a nossa contribuição para a animação brasileira. Sabe porquê? Porque grande parte do arquivo da animação brasileira não está em boas condições. Muitos animadores que já não produzem, alguns já faleceram, não tiveram os seus arquivos bem cuidados.

Existem poucas exceções, como o caso do Lula Gonzaga, em Pernambuco, que criou um museu da animação pernambucana. Na Bahia também foi criado um museu dedicado ao Chico Liberato, que é um dos ícones da animação brasileira.

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Lula Gonzaga – Foto: Jan Ribeiro/Secult-PE

Nós estamos a contribuir, procurando cuidar do nosso arquivo que, ao contrário destes colegas que mencionei, é muito grande. Quando falo de Lula Gonzaga, ele tem algumas dezenas de filmes. O mesmo acontece com Chico Liberato. Mas no caso do Núcleo de Cinema de Animação de Campinas, são centenas de filmes para cuidar.

Estamos a fazer um grande esforço para isso. E muito mais do que eu, quem vai fazer este trabalho são as pessoas que passaram pelo núcleo e que, neste momento, estão ainda mais envolvidas. São elas que vão cuidar do núcleo nos próximos 50 anos.

Quais são os projetos futuros do Núcleo? O que você pode compartilhar sobre o que está por vir?

Falar de projectos futuros é muito estimulante, mas preciso aqui citar algumas pessoas. O aniversário do núcleo acontece a 10 de abril. Foi criado a 10 de abril de 1975 pelo Wal, eu entrei em 1979 e fomos desenvolvendo o trabalho. No início, alguns artistas participaram do núcleo, fizeram algumas animações e depois regressaram à sua arte. O Wal e eu continuámos, portanto.

No dia 10 de abril de 2023, juntámo-nos e fizemos um jantar, que foi na Fena Fábrica, onde convidámos alguns animadores que já passaram pelo núcleo para compor a comissão dos 50 anos do núcleo.

Ali estão a Andréa Alves, que cuida da comunicação, Débora Castro, Fernanda Viana, grande amiga e produtora, Felipe Miranda, que está no núcleo há mais de 10 anos, Janice Castro, produtora que trabalha com o núcleo há mais de 20 anos, Lucas Vega, que está no núcleo desde os 8 anos e que faz 50 anos este ano, juntamente com o núcleo, Marisa, que nos auxilia principalmente na parte administrativa.

Rebeca, uma jovem formada em preservação de filmes, está a cuidar do acervo do núcleo. O Wilson Lazareti começou isto tudo. Milton Jesus, fotógrafo que trabalha com o núcleo há mais de 15 ou 20 anos e que continua connosco, para além de outros trabalhos que realiza.

Rafaela Repache, que se formou há pouco tempo em artes visuais na Unicamp, está totalmente envolvida com os trabalhos do núcleo. Há outras pessoas também, e peço desculpa se não as mencionar por injustiça.

Estas são, portanto, as pessoas que vão conduzir os próximos 50 anos do núcleo.

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Equipe do Projeto Núcleo 50 anos – Foto: Samuel Lorenzetti

Posso adiantar que já está a ser continuado um trabalho que começámos e que vai sair em breve, daqui a alguns anos. O Wilson Lazareti fez um longa-metragem intitulado “A História Antes da História” e, logo que terminou esse projecto, começou a fazer “A História Durante a História”, no qual está a trabalhar actualmente.

No meu caso, terminei a longa-metragem “Café, um Dedo de Prosa”, e estou a trabalhar num segundo longa-metragem, cujo título é “Vapor Esperança”.

Este trata da imigração italiana, com base num estudo aprofundado que fiz sobre o tema, mas também em muitas conversas com o meu avô. O filme é um documentário animado que mistura essas fantasias e as conversas que tive com ele. Como em todos os outros filmes que faço, todas as informações presentes são rigorosamente correctas.

Claro que vamos continuar a desenvolver as oficinas, aperfeiçoando-as cada vez mais. As pessoas que mencionei, em particular os mais jovens, estão cada vez mais envolvidas nestas actividades.

Este grupo que tem trabalhado nos 50 anos do núcleo também foi encarregue da curadoria da exposição que está a ser montada no CCLA para comemorar os 50 anos do núcleo. Além das pessoas que referi, está também a Roberta Santana, que tem uma ligação ao núcleo há pelo menos uma década.

Estas pessoas estarão igualmente envolvidas na preservação do acervo do núcleo. Quando falo em acervo, não me refiro apenas aos filmes, mas também aos materiais que o núcleo possui, como papéis, desenhos originais e outros documentos. Tudo isto precisa ser recuperado e cuidado.

Tenho muita esperança, respondendo a uma pergunta que fizeste anteriormente, sobre a nossa relação com as novas gerações. Fico cheio de esperança quando vejo estes jovens e também pessoas que já não são tão jovens, mas que estão profundamente envolvidas com a continuidade do trabalho.

Estão muito identificados com o Núcleo de Cinema de Animação de Campinas e vão continuar a levar isto avante connosco e mesmo depois do nosso trabalho no núcleo.

Quero agradecer-te pela oportunidade de ter esta conversa e estamos à disposição. Um grande abraço.