O cinema português voltou a marcar presença em Veneza. A jovem realizadora Miriam Pedrozo foi distinguida na 14.ª edição do Bookciak, Azione! 2025, prémio paralelo da Bienal de Veneza, integrado nas Giornate degli Autori (5 e 6 de setembro).
Criado com o intuito de aproximar o cinema e a literatura, o concurso celebra curtas-metragens inspiradas em obras literárias contemporâneas e tem-se afirmado como espaço de diálogo entre artes e territórios distintos.
Nesta edição, o júri foi presidido pela cineasta iraniana Sepideh Farsi, uma das vozes de um cinema que faz da resistência um gesto criativo, e distinguiu obras de várias geografias, sublinhando a vitalidade de um campo artístico que recusa fronteiras.
Entre os premiados destacou-se o contributo português com “Sulla Sabbia” (2025), a mais recente curta da cineasta, livremente inspirada no livro de poesia Istà (2024), de Andrea Longega, publicado pela editora italiana Samuele Editore.
O tema lançado este ano — Scappo dalla città (Fugir da cidade) — serviu de ponto de partida para filmes que exploram deslocações, pertenças em crise e novas formas de resistência íntima e coletiva.
Miriam responde ao desafio com um filme que não procura adaptar literalmente a obra de Longega, mas recriar, através da animação, a respiração breve e fragmentária da poesia. É nesse gesto que o estilo visual ganha força própria: o traço surge leve, esboçado, quase inacabado, como se a imagem fosse inventada no instante em que se projeta. Entre linhas rápidas e sombras que evocam a gravura, a curta instala-se num território poético e orgânico, onde o minimalismo do desenho se transforma em intensidade expressiva.

Apesar da juventude do percurso, a cineasta já inscreveu o seu trabalho em festivais internacionais com curtas como “The Bus Stop” (2023), distinguida com menção honrosa no Festival of Animation Berlin 2023 e “Mr. Blue” (2024), que viajaram por festivais na Alemanha, Reino Unido, Argentina e Portugal.
Formada em Cinema e Vídeo na Escola Artística António Arroio, estreou-se com “Morrer à Beira Rio” (2022), o seu filme final de curso, selecionado para a categoria Novíssimos do IndieLisboa 2022, assumindo sozinha todas as etapas de produção.
Desde então, tem privilegiado o formato curto e curtíssimo, encarando-o não como limite, mas como espaço fértil de experimentação e descoberta de uma voz própria. O prémio Bookciak não é um ponto de partida, mas a confirmação de uma trajetória em curso. Para além de projetar o filme num circuito europeu que engloba dez festivais, esta distinção coloca Miriam entre as cineastas de animação portuguesas a seguir de perto.
Foi a partir deste reconhecimento que conversámos com a realizadora sobre o seu percurso, o diálogo entre técnicas, e o modo como a poesia pode ganhar corpo e movimento através da animação.

Qual foi para ti o maior desafio em transformar a brevidade do verso numa experiência visual?
O maior desafio é sempre tentar simplificar um poema. Embora a poesia, por vezes, aparente ser algo simples, é um trabalho complexo resumir sensações e tentar compreender como posso transformar um pouco disso em animação.
Há sempre ideias, mas nem todas são possíveis de executar com aquilo que tens à disposição. Para mim, é sempre um desafio tentar resumir tudo aquilo que gostaria de colocar em prática em algo breve, simples e que carregue, pelo menos, uma certa essência daquilo que é um verso de poesia.
Em que momento do processo percebeste que a leveza do traço esboçado era a forma certa para este projeto, e que impacto esperavas gerar ao privilegiar essa estética?
Gosto da ideia de que a poesia pode carregar uma certa leveza, tal como a areia — daí o título “Sulla Sabbia”, que significa Sobre a Areia.
Sinto que é importante que se sinta essa leveza e, assim que comecei a ler o livro do Andrea Longega, pensei numa abordagem de desenho mais simples, quase como um esboço.
Em curtas como “The Bus Stop” ou “Mr. Blue” há uma atenção constante à fragilidade do instante. Vês “Sulla Sabbia” como continuidade dessa busca, como rutura, ou como síntese do teu percurso até agora?
Vejo as minhas curtas sempre como fragmentos. Não só porque são mesmo muito curtas, mas porque são, de certa forma, traços ou começos de alguma coisa.
Não acho que possa dizer que já tenha feito algo que considere como uma síntese. Sinto que é tudo contínuo e também uma experimentação, e a fragilidade do instante faz sempre parte disso.
Entre os teus filmes existe um trânsito frequente entre stop motion e 2D. Quando mudas de técnica, transformam-se também os temas e emoções que consegues explorar, ou é sempre a mesma sensibilidade a atravessar materiais tão distintos?
A sensibilidade penso que seja algo quase inato. Talvez possa ser mutável, mas, se a tens, não desaparece quando mudas a técnica com a qual trabalhas.
Mudar de técnica é, no fundo, apenas uma variação de abordagem ou a utilização de um alfabeto diferente.
Tal como numa conversa, em que podes mudar as palavras que escolhes — porque talvez assim consigas expressar-te melhor ou simplesmente porque essas palavras te parecem mais bonitas.
Por isso, a escolha entre trabalhar com uma técnica ou outra pode tanto partir do que funciona melhor visual ou esteticamente para aquilo que queres contar, como daquilo com que te sentes mais à vontade para trabalhar.
A animação stop motion é muito plástica e muito física, e tem ainda a vantagem de permitir imaginar um espaço que vai para além do desenho — algo de que gosto muito.
Por outro lado, requer bastante tempo, e é daí que surge a necessidade de pensar sempre em trânsitos ou abordagens diferentes, de modo a não constringir ideias, mas antes transformá-las em algo que deixe pelo menos o traço de uma certa sensibilidade.
O tema do Bookciak deste ano era fugir da cidade, e “Sulla Sabbia” vai agora percorrer um circuito europeu de festivais. De que forma sentes que este reconhecimento pode abrir novas direções no teu trabalho – seja na escolha de temas, no diálogo com diferentes públicos ou até na ambição de futuros formatos?
A parte mais divertida, para além de fazer um filme, é vê-lo viajar. Esse escape da cidade é muito importante, e fico muito feliz por a minha curta, embora breve, estar a ter algum reconhecimento e a ser calorosamente acolhida pelo público.
Isso também me dá vontade de fazer mais coisas e, claro, mostra que há muitas direções possíveis a tomar. Estou muito curiosa e com um certo apetite para trabalhar, arriscar, pensar mais além e saborear o que for encontrando pelo caminho.

