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O cinema de Östlund. na iminência da destruição

Ruben Östlund é um realizador sueco, que tem vindo a conquistar o olhar atento da cinefilia de hoje. As suas primeiras experiências enquanto realizador foram feitas em instâncias de sky. E assim, uma paisagem banhada a neve tornou-se um cenário muito próximo de Ostlund, e no seu filme “Força Maior” demonstra como é capaz de transformar essa paisagem, aparentemente fria e calma, em algo que, inesperadamente e bruscamente, nos leva a experienciar uma força sublime, em forma de uma avalanche. Esta cena extraordinária concentra em si as particularidades do seu cinema, é a metáfora perfeita do seu estilo cinematográfico.

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“Força Maior” (2014)

Ostlund filma desde as aparências. O seu cinema mostra-nos a calma que habita a camada superficial das coisas; ao mesmo tempo, algo vem perturbar essa aparência bela, mas sem nunca a esmagar – a avalanche detém-se no instante em que aparece a iminência da destruição total. É aqui que Ostlund se aproxima do cinema de Michael Haneke ou Roman Polanski. O primeiro deixa as forças fervilharem por trás das aparências para as fazer surgir, progressivamente, até que elas as consumam e as destruam por completo – em “Funny Games”, quando pensamos que o mal saiu de cena, ele volta para acabar o seu serviço; o segundo, aproxima-se mais do realizador sueco, ao preservar as aparências, sem deixar que o excesso transborde até à destruição. O filme “Carnage” é um bom exemplo desse tipo de cinema que Polanski e Ostlund partilham. Tal como Ostlund, Polanski coloca em cena uma determinada classe social para lhe retirar, aos poucos, todos os véus que escondem uma natureza em bruto, com as mesmas emoções e instintos básicos que qualquer outro ser humano, de qualquer outro extrato social. Os diálogos são o chão onde tudo assenta; porém, este chão não existe sem as brechas por onde vaza uma racionalidade aparente. A linguagem, enquanto força dissimuladora, vai sendo desmontada e interrompida por uma série de gestos que se vão sobrepondo a essa lógica abstrata que os deseja abafar – o que remete para o gestus do teatro brechtiano e para as peripécias caricaturais que desmancham toda a falsidade perfumante presente no charme discreto da burguesia, do cinema de Buñuel. O exagerado choro de Tomas, em “Força Maior”, é a explosão de uma emoção que foi por ele contida em todas as conversas que teve, depois de em todas elas, manter a aparência sorridente e tentar esconder-se por trás de uma interpretação que o apaziguasse. Em “O Quadrado”, Christian tem a sua explosão emocional quando decide vasculhar o lixo e telefonar aos pais da criança que o confrontou, para fazer a sua catarse e confessar que, afinal está mais interessado nele mesmo e na sua vida do que comprometido com uma arte que apela à solidariedade e à confiança no outro. Há uma aparência que se monta e há uma emoção que acaba por derrubá-la e a expor enquanto aparência frágil e covarde. Nem mesmo as personagens que envolvem os protagonistas ficam imunes – nem mesmo nós, espectadores. Tudo é contaminado pelas questões dilacerantes: e tu, ficarias a proteger a tua família ou fugirias? As questões são desconcertantes; os diálogos fervilham; as emoções perturbam uma paz aparente.

As emoções humanas são avalanches que não cessam. São estas que irrompem e interrompem essa racionalidade aparente. Embora o cinema de Ostlund pareça bastante cerebral, isso funciona apenas como uma tela, com uma certa neutralidade, onde acabam por se plasmar os fluxos emocionais que se mostram ao mesmo tempo que se mantêm escondidos. Talvez o realizador nos queira mostrar como as próprias emoções já não se manifestam em nós da mesma forma, como se perdessem alguma força por entre tanta pressão social, tanta capa que pretende esconder um núcleo humano mais real que todos (ainda) partilhamos. No fundo, aquilo que Ostlund pretende, tanto das suas personagens como dos espectadores, é a manifestação de um instinto que exige a acção. Estamos sempre inseridos num meio social que exige de nós determinados comportamentos.

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“O Quadrado” (2016)

O seu mais recente filme “O Quadrado”, vencedor da Palma de Ouro, no Festival de Cannes, mostra bem este seu lado ético, que pretende gerar um efeito dominó de reacções. Christian, o protagonista, luta incessantemente contra o seu ego. Perante um pedido de socorro, reage e tenta acudir a pessoa, mas acaba sendo assaltado; para reaver as suas coisas, acusa e ameaça um prédio inteiro; nesse prédio, alguém chega até ele e o confronta com toda a força; recebendo a sua carteira ainda cheia de notas, não nega uma esmola à senhora diabética que sabe bem o que quer, que mostra também ter um ego e uma vontade própria. Esta personagem vai sendo esmagada entre o seu egoísmo crónico e a sua vontade de altruísmo, que não passa disso, de uma abstracta vontade. A instalação que dá o nome ao filme, da qual Christian é responsável, é também um signo ético. Esse pequeno quadrado, bordejado por uma luz intensa, pretende ser um “santuário de confiança e solidariedade, e dentro dele, todos partilhamos os mesmos direitos e obrigações”. Este quadrado demonstra, ao mesmo tempo, o enviesamento moral de Christian e o pessimismo esperançoso de Ostlund. Para o protagonista, o quadrado é mais uma tarefa que faz parte do seu dever profissional, um gesto mecânico que tal como outra mercadoria necessita de uma estratégia de marketing que a possa promover, a qualquer custo – aquilo que pretende ser o signo dos valores morais é promovido sem qualquer escrúpulo. Para Christian, o quadrado está realmente vazio; porém, para Ostlund, talvez ele ainda represente um espaço por preencher, um vislumbre de potência que se destrói quando é apropriado pelas elites liberais, que usam esses gestos para preservar uma aparência humanista que na verdade vive de uma energia animal cega, que tudo pretende sugar.

Mas Ostlund vinga-se dessas apropriações burguesas, que amiúde falsificam os gestos mais significativos – daquilo a que muito simplesmente chamamos de hipocrisia. Se por um lado temos os valores que pretendem ser especificamente humanos e pretendem gerar boas ações; por outro, existem os instintos mais básicos que acabam por dissipar todo o bálsamo que vem cobrir esse mundo de valores. A cena do jantar, em que um artista é convidado a fazer a sua performance, representando um primata, é outra das cenas centrais do seu cinema. Os convidados são confrontados com um elemento que vem gerar uma ambiguidade e procurar uma acção verdadeira que se esconda por trás de toda a gala. A certa altura, já não percebemos quem é aquela personagem ou qual o seu papel; ou onde começa e acaba a sua performance. Os espectadores tornam-se também um elemento presente, posto em causa por todo aquele efeito de distanciamento. Esse estranhamento, que está presente no irromper da animalidade, ganha um impacto especial pela forma como a cena é filmada: os silêncios são intensificados para fazer sobressair todos os gestos do actor e a ansiedade de todos os que o rodeiam; enquanto ficamos suspensos na incerteza da próxima acção do homem-primata, somos golpeados e estremecemos com as suas bruscas e vigorosas batidas no chão. Nos filmes de Ostlund, a indiferença é proibida. Tal como as suas personagens, somos constantemente cutucados ou influenciados por uma alteridade qualquer, seja-nos ela familiar ou estranha. E neste ponto, estamos numa das questões éticas essenciais do cinema do realizador sueco.

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“Play” (2011)

Nenhum indivíduo vive isolado em si mesmo, como se fosse uma substância simples, que se possa destacar do resto da realidade que o envolve. Nos filmes de Ostlund, as supostas esferas individuais ilusórias que pensamos existir são amiúde quebradas para nos fazer ver que o “eu” é uma invenção, cuja a única função é alienar o homem de si mesmo. “A minha liberdade acaba quando começa a liberdade do outro”, ouvimos dizer comumente, o cinema de Ostlund vem dizer-nos que a liberdade não tem um começo, e muito menos um fim… Uma solidariedade inescapável esconde-se por trás de todas as nossas ilusões individuantes: a primeira bactéria que existiu foi a que deu vida à última que irá sucumbir, no último dia de vida do nosso planeta. Em “Play”, três crianças são abordadas num centro comercial por um outro grupo de crianças e adolescentes, e um suposto telemóvel roubado pelos primeiros é o mote para que seja possível ficarem reféns do pequeno gangue. Num comboio, a privacidade de um adolescente que viaja a ouvir música é totalmente violada, de uma forma brutal e subtil. Um membro do gangue resolve interpela-lo com perguntas, enquanto lhe tira os auscultadores, causando-lhe um inevitável constrangimento. A certa altura, o jovem começa a cantarolar uma música e obedece ao gangue apenas para ser libertado daquele sequestro repentino. O outro aparece como polo de poder e influencia a acção. A avalanche é um outro excessivo, pleno de poder e que por isso vai provocar a reacção mais pura e instintiva, vai exigir a acção.

O cinema de Ostlund é essa avalanche ética que vai caindo sobre todos nós e que não cessa no ecrã; a força intensiva com que nos afecta revela um cinema inteligente e sóbrio. Se das suas personagens exige acções, de nós exige o pensamento sobre elas. Todo este conteúdo é inserido numa forma visual geométrica, maximamente perfeccionista. Há mestria de cada vez que a posição da objectiva está sob o seu comando e é chamada a captar uma porção de mundo. Quando fixa a câmara deixa sobressair as linhas até à abstração e faz com que os movimentos dentro do plano se tornem forças que o dinamizam; quando a movimenta, monta matematicamente a sequência, não deixando nenhum movimento entregue ao acaso. Ostlund sabe como nos agarrar em todas as dimensões de um filme. O nosso olhar não consegue escapar e acaba captado por uma forma visual tão excessivamente organizada, e ao mesmo tempo, o nosso pensamento é posto em movimento pela interpelação constante de um outro que sempre nos toca.

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