“Um Café e um Par de Sapatos Novos”, co-produção entre a Albânia, Portugal, Grécia e Kosovo, realizado por Gentian Koçi, é um filme que explora temas profundos de ligações familiares, isolamento e superação. O enredo centra-se em Gëzim e Agim, irmãos gémeos surdos-mudos, interpretados pelos atores portugueses Edgar Morais e Rafael Morais, cuja vida é abalada pela descoberta de uma doença genética rara que lhes causa uma cegueira progressiva e irreversível. O diagnóstico traz um impacto enorme para os irmãos, que sempre dependeram da sua comunicação visual e se veem agora confrontados com a perda gradual de todos os recursos de comunicação. A atriz Drita Kabashi junta-se ao elenco no papel de Ana, a namorada de Gëzim, trazendo uma camada adicional à complexidade emocional do filme.
“Um Café e um Par de Sapatos Novos” teve a sua estreia mundial no Tallinn Black Nights Film Festival e tem sido amplamente reconhecido em diversos festivais internacionais, conquistando prémios como o de Melhor Ator para Edgar Morais e Rafael Morais no Festival Internacional de Cinema de Pristina, além do Prémio do Público no Festival Internacional de Cinema de Salónica. No Bergamo Film Meeting, Koçi recebeu o prémio de Melhor Realização, e o filme foi também galardoado com o Golden Sun para Melhor Filme e o prémio da Associação de Críticos da Macedónia no Festival de Cinema Europeu Cinedays. Em Portugal, o filme estreou no dia 31 de outubro de 2024 e conta já com distribuição no Brasil.
Entrevista a Edgar Morais
Cinema Sétima Arte (CSA): Como surgiu este projeto na tua carreira profissional? Já conhecias o realizador albanês, Gentian Koçi?
Edgar Morais (EM): Não conhecia o realizador de todo. Ele andava à procura de atores gémeos para fazerem as personagens já há alguns meses antes de nos contactarem. Inicialmente, o realizador estava à procura de atores surdos para as personagens principais, mas não encontrou ninguém que achasse que conseguisse suportar o filme. O Gentian mandou uma mensagem direta pela internet ao Rafael a pedir para entrar em contacto, a apresentar-se a nós, a introduzir o projeto e, de início, tive algum ceticismo, porque não me identifico com tudo o que o Rafael tem feito e recebo várias propostas às quais não respondo, particularmente para personagens de gémeos, é comum não serem as mais interessantes. Entretanto, fizemos uma reunião através de Zoom, foi na altura da pandemia, apresentou-nos o projecto, achei interessante, mas quando vi o seu filme anterior “Daybreak” (2017) e quando li o argumento, que percebi que era um projeto diferente, um projeto muito especial. Foi bastante assustador dizer que sim a esta personagem e ao projeto, porque achei que era uma responsabilidade enorme. O realizador deu-nos bastante confiança, disse que ou éramos nós a fazer o filme ou então o filme não existiria, e achei que o filme merecia existir, e estou contente por ter aceite o desafio. Não foi fácil, mas estou muito feliz.
CSA: O que sentiste a primeira vez que leste o argumento? Enquanto ator, como foi criar uma personagem que vê totalmente limitadas as suas capacidades de comunicação?
EM: Assustou-me imenso. A primeira reação que tive foi bastante visceral, não só pela personagem, como com a perspetiva de trabalhar no filme enquanto ator. É engraçado que o filme estreou em Portugal no dia 31 de outubro, dia de Halloween. De certa forma, eu acho que o filme é bastante assustador. Conhecemos várias pessoas durante o processo de investigação e de ensaios que eram surdas e perderam a visão; cada pessoa age de forma diferente. Não sei como reagiria se me acontecesse a mim, talvez não fosse a pessoa mais forte.
CSA: Tendo em conta que o filme é baseado numa história real, como foi toda a preparação para a rodagem? Tiveram espaço para improvisar e participar na construção do argumento?
EM: Tivemos alguns meses de ensaios antes de começarmos a filmar em Tirana, também com a atriz que fez de Ana, Drita Kabashi. Fizemos questão de ter a Associação de Surdos da Albânia presente nos ensaios e na rodagem todos os dias, para termos a certeza absoluta de que o filme estava completamente fiel à realidade, para também ser criada a possibilidade da comunidade surda poder ir ao cinema e ver o filme.
O realizador é muito fiel ao argumento original, houve alguns detalhes que mudaram ao longo dos ensaios e na rodagem, mas poucos.
CSA: Já sabias língua gestual, ou aprendeste para o filme?
EM: Tivemos que aprender, não sabíamos nada. E varia de país para país, nós aprendemos a língua gestual albanesa para o filme. Tivemos quase um ano de aulas semanais, aprendemos basicamente o que estava no guião com mais algumas palavras para podermos improvisar um pouco. É como aprender uma língua nova, um mundo inteiro, demoraria anos a aperfeiçoar.
CSA: O filme apresenta uma relação familiar bastante forte, e um laço entre dois irmãos gémeos que é inseparável. Existe algum ponto da relação pessoal com o teu irmão que esteja refletido na narrativa?
EM: Bastante, tirei bastante de mim para a personagem e também da relação com o meu irmão. Houve bastante energia, conflito, amor e tensão que fomos buscar de nós, desde a nossa infância e adolescência. Trabalhamos emoções novas e outras que já conhecíamos, foi uma descoberta. Foi também a primeira vez que trabalhei profissionalmente com o Rafael num projeto enquanto protagonistas; já tínhamos trabalhado juntos, mas nada assim deste nível. Sim, houve bastante do Edgar e do Rafael nas personagens.
É engraçado, já filmamos o filme há algum tempo e à medida que o filme vai saindo, voltam a aparecer na minha vida momentos um pouco aleatórios, mas que acabam por trazer um significado e é sempre de forma diferente. Eu acho que isso vai continuar, talvez durante muitos mais anos. Vai mudando também a ligação que eu tenho com o filme, com o trabalho que fiz e também com a relação que tenho com o meu irmão, que também se vai alterando à medida que vamos crescendo.
CSA: No que toca à representação de pessoas com deficiência visual e auditiva, acreditas que estas histórias fazem falta no grande ecrã?
EM: Sim, sem dúvida. Aliás, foi uma das razões principais que me levaram a aceitar este desafio. Acho que é extremamente, não só importante, mas essencial, contarmos estas histórias. Existe também uma falta enorme de acessibilidade, acho que deveríamos todos aprender na escola a falar língua gestual. Ao fazer este filme percebi que é uma forma de viver muito solitária. Na Albânia, por exemplo, a percentagem de pessoas surdas que aprenderam a falar língua gestual é muito pequena. É uma forma de vida muito isolada e o processo para esta personagem foi um pouco isso, foi perceber, pouco a pouco, o que é que seria perder as janelas de comunicação que temos com o mundo à nossa volta.
CSA: O filme aborda temas sociais importantes, no que toca à integração de pessoas com deficiências na sociedade, assim como o papel dos cuidadores informais. Acreditas que o filme possa ter um impacto importante no debate público sobre estes temas?
EM: Eu tenho esperança que possa influenciar em alguma coisa. Se acho que vai acontecer, não sei. Acho que o filme está a ter um sucesso enorme para o filme independente que é. Se houver alguém que possa repensar um pouco na forma como as coisas são feitas, não só na sociedade mas, como disse, nas limitações de acessibilidade que as pessoas com deficiência visual e auditiva têm, já valeu a pena. Infelizmente, o número de espectadores em sala de cinema está a baixar todos os anos, particularmente para filmes independentes. Há uma falta de apoio público ao cinema português, e ao cinema independente em geral, e se de alguma forma o sucesso deste filme influenciar uma mudança no pensamento, e na perceção de histórias como estas, já ficaria feliz.
CSA: É a cena final que dá título ao filme. Como é que a interpretas?
EM: Eu tenho uma ideia clara de como desenvolvi a personagem para esta cena, não sei se quero desvendar muito nesta entrevista, porque não quero que influencie a maneira como o filme possa ser visto. Acredito que esta cena foi colocada mais em forma de questão do que resposta. Era importante para a cena ser realista, e é isso que torna a cena tão especial; há várias forças que a puxam para cada lado. Quando eu fiz a cena, tinha, sem dúvida, uma ideia específica para o que estava a acontecer, foi um momento de encontrar esse ponto entre o eu e o Gëzim; o realizador deu-nos espaço para criar e improvisar nesta cena, e é neste momento que as personagens Agim e Gëzim criam a sua própria linguagem para poder comunicar. E, aliás, é uma história gira porque nem o realizador nem ninguém na equipa sabe o que é que eu e o Rafael dissemos um ao outro.