No primeiro dia de sessões competitivas da 7.ª edição do Family Film Project foram mostrados três filmes com origem num mesmo interposto geográfico de culturas, o Crescente Fértil, espaço de combinação e sobreposição de culturas que ao longo dos séculos revelaram dificuldades em conviver entre si e em si mesmas.
No primeiro filme, “Ktamim”, de Yekaterina Diakova, observamos a realidade da comunidade judaica soviética através do pedido da própria realizadora ao seu pai para que este prestasse contas pela sua personalidade errática, realidade que terá afetado negativamente a cineasta durante a sua infância. O filme é um retrato sensível sobre uma figura, a do pai, que, embora muito defeituosa, nos deixa um certo sentimento de empatia perante a sua forma desfocada de ver o mundo.
O segundo filme, “Amour du Réel”, de Iman Behroozi, surge na tradição da cinematografia iraniana, com planos reminiscentes de Panahi e Kiarostami, em que a janela de um veículo se transforma num ecrã que enquadra o mundo. O realizador procura a sua família no Irão para que a resposta à questão “porque não dizemos amo-te mais frequentemente” seja encontrada, para que essa fórmula mágica possa ser utilizada para remediar os seus próprios conflitos no seu país de acolhimento, a Alemanha.
Finalmente, o terceiro filme “#Work_In_Progress”, dos irmãos Tomer e Barak Heymann, reúne uma coleção de curtas realizados para o YouTube, nos quais os realizadores procuram os oxímoros presentes na sociedade israelita, na esperança de que estes façam sentido no espetador não do cinema, mas do espetador israelita que vivência estas contradições de uma sociedade disforme.
3.º dia – “Marias da Sé”, de Filipe Martins
Quando a Sé desce ao Passos Manuel e se encontra com a sua projeção na tela branca, a magia do cinema contagia todos os que estiveram nesta sessão, todos os afortunados que obtiveram o seu bilhete para viagem a uma Sé familiar, típica, bairrista e profundamente orgulhosa da sua origem. Este é um daqueles casos em que se confunde o espaço com as gentes, em que se dilui quem molda quem, se a Sé cria esse ambiente comunitário ou se os vizinhos constroem a identidade de um espaço que se considera priviligiado nas relações humanas, embora precário nas condições sociais.
O filme de Filipe Martins, “Marias da Sé”, inundou a sala do Passos Manuel estabelecendo um espaço contínuo entre a tela e o público que candidamente se reconhecia na imagem e reconhecia os seus. Houve uma sintonia entre o público que tinha feito o filme e o público que encontrava atrás de si uma segunda componente de compreensão da imagem em movimento. Por vezes, a teoria da sétima arte refere-se à sensação de imersão na realidade que a sala escura proporciona. Esta sessão é a epítome dessa noção teórica, já que entre os cânticos e hinos da Sé entoados, os bordões bem conhecidos das mulheres peixeiras e a satisfação de serem protagonistas por uma noite, em algo maior que elas mesmas, fomos todos imersos na realidade dos dias da Sé e das mulheres, das nossas senhoras Marias que dão corpo a essa geografia. A rever numa sessão especial no dia 20 de Outubro pelas 16 horas no cinema Passos Manuel.
(Artigo em Atualização)