Assim que Juliette Binoche anunciou que o iraniano Jafar Panahi havia vencido a Palma de Ouro de 2025 pelo seu filme de vingança Un Simple Accident, a internet foi inundada por vídeos antigos que resgatavam a memória do Festival de Cannes de 2010. Em um deles, Binoche chorava em uma coletiva de imprensa ao saber da prisão e da greve de fome de Panahi. Em outro, ao receber o prémio de melhor atriz por Cópia Certificada, de Abbas Kiarostami, ela segurava um cartaz com o nome do realizador e fazia um apelo emocionado por sua libertação, afirmando que o único crime de Panahi havia sido “ser artista e ser independente”. Esse gesto público, somado à pressão internacional, foi considerado por muitos como fator decisivo para a libertação do realizador na época, sob fiança, apenas três dias depois do palmarés do festival, em 25 de maio de 2010. O jornal The Irish Times chegou a estampar em sua manchete: “Binoche liberta realizador iraniano”.
Quinze anos depois, esse episódio ressoou com força na cerimónia de premiação ontem a noite do maior festival de cinema do mundo. Durante a coletiva de imprensa pós palmarés, o moderador se referiu ao prémio concedido a Panahi, talvez por lapso, como um “gesto”, ao que Binoche respondeu prontamente, confirmando que sim, havia ali uma motivação simbólica. Ela relembrou o impacto do seu apelo em 2010 e afirmou que acreditava ser “importante” que o júri reconhecesse Un Simple Accident com o prémio máximo, talvez como uma forma de reparação histórica ou até de apelo preventivo, diante das possíveis consequências que o filme poderá ter sobre a vida do realizador ao retornar ao Irão. Num filme que expõe o regime iraniano de forma tão frontal, será que o prémio também pode suavizar essas consequências?
Nas últimas 24 horas, a discussão sobre a função do “prémio político” voltou ao centro do debate. Trata-se de uma zona ambígua no campo cultural: por um lado, festivais oferecem visibilidade e uma forma simbólica de proteção a artistas ameaçados, reconhecendo que a arte é inseparável dos contextos sociopolíticos de onde emergem. Por outro, há o risco de que o gesto político se sobreponha ao “mérito artístico” (e muitas aspas aqui), reduzindo o cinema a uma espécie de declaração de solidariedade. Premiar filmes politicamente urgentes — como o de um realizador perseguido no seu país de origem — pode ser um ato potente de resistência, um lembrete de que festivais não são apenas vitrines, mas também espaços de poder. A tensão está no papel duplo dos festivais: são formadores de gosto, mas também árbitros morais. E é nesse encontro (ou confronto) entre ética e forma que suas contradições mais evidentes emergem.
Un Simple Accident chegou a Cannes já envolto numa aura inevitável de evento político. Feito às escondidas, o filme acompanha a trajetória de um mecânico que, ao reconhecer a voz de seu antigo torturador, decide sequestrá-lo para fazer justiça com as próprias mãos. No momento de executar seu plano — enterrar o homem vivo — uma dúvida se instala: será mesmo esse o homem responsável por sua dor?
Panahi transforma esse ponto de partida brutal em uma comédia de erros marcada por um humor melancólico e macabro. É um filme inquieto e provocador, por vezes prejudicado por uma certa artificialidade, fruto de sua estrutura quase teatral, que expõe suas fragilidades. Panahi constroi aqui um teatro do absurdo para explorar as ambiguidades morais da vingança. Se uma vítima reproduz a violência que sofreu, o que a diferencia do seu algoz?
O desfecho escolhido por Panahi é um tanto previsível, porque assume uma postura superior de correção moral diante dos que se corrompem no poder, mas tropeça ao reduzir esse dilema a um gesto simplista. Ainda assim, a força simbólica da alegoria se amplia. O que começa como o drama de um homem comum em busca de justiça, se converte, pouco a pouco, na metáfora de um país inteiro.
Ao premiar Un Simple Accident, Cannes não apenas reconhece o talento de um dos grandes nomes do cinema mundial, mas também assume, ainda que discretamente, sua função política. Não é uma novidade, mas continua a ser um gesto controverso e também poderoso — desses que, com sorte, ainda podem ter consequências no mundo real.
Palmarés da 78.ª edição:
Palma de Ouro: “Un Simple Accident”, de Jafar Panahi
Grande Prémio: “Sentimental Value”, de Joachim Trier
Prêmio do Júri: “Sirât”, de Oliver Laxe ex-aequo com “Sound of Falling”, de Mascha Schilinski
Prêmio Especial do Júri: “Resurrection”, de Bi Gan
Melhor Realizador: Kléber Mendonça Filho, por “O Agente Secreto”
Melhor Argumento: Jean-Pierre e Luc Dardenne, por “Jeunes Mères”
Melhor Atriz: Nadia Melliti, por “La Petite Dernière”
Melhor Ator: Wagner Moura por “O Agente Secreto”
Un Certain Regard:
Melhor Filme: La Misteriosa Mirada del Flamenco, de Diego Céspedes.
Prémio do júri: Un Poeta, de Simón Mesa Soto
Melhor realização: Arab & Tarzan Nasser, por Once Upon a Time in Gaza
Melhor ator: Frank Dillane, por Urchin, realizado por Harris Dickinson
Melhor atriz: Cleo Diára, por O Riso e a Faca , realizado por Pedro Pinho
Melhor argumento: Pillion, de Harry Lighton
Outros prémios:
Caméra d’or (melhor filme de estreia): The President’s Cake, de Hasan Hadi, com menção honrosa para My Father Shadow.
Palma de curta-metragem: I’m Glad You’re Dead Now, de Tawfeek Barhom, com menção especial para Ali.
Prémio da crítica (FIPRESCI): O Agente Secreto.
Documentário: Imago, de Déni Oumar Pitsaev.
Queer palm: La Petite Dernière, de Hafsia Herzi.
Prémio do júri ecumênico: Jeunes Mères.
Prémio de júri popular (Quinzaine): The President’s Cake.