Josephine Decker não tem medo de Virginia Woolf (mas deveria)

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Após o tremendo sucesso de “Madeline’s Madeline” a realizadora indie embarca na biografia da escritora de terror Shirley Jackson, protagonizada em modo overacting por Elisabeth Moss.

Quem tem medo de Shirley Jackson? Perguntava a jornalista do diário alemão Tagesspiegel a propósito de “Shirley”, o novo filme da celebrada autora indie Josephine Decker. A referência à peça de Edward Albee, imortalizada no filme com Elizabeth Taylor, que destrinchava as complexidades do casamento de um casal em crise, tem muitas semelhanças com o material filmado por Decker.

Contudo, a Shirley de Decker, interpretada por Elisabeth Moss, traz à memória uma outra Virginia Woolf, aquela que Nicole Kidman fez célebre em “As Horas”. Enquanto no filme de Daldry a escritora inglesa se debatia com o bloqueio criativo na construção do seu mais celebrado romance “Mrs Dalloway”, a Shirley de Decker segue a autora enquanto esta se prepara para escrever o seu primeiro romance: “Hangsaman”.

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No entanto, assim como o nariz de Kidman, são os tiques de Moss na sua construção do “génio perturbado”, lidando com os fantasmas pessoais – uma espécie de personagem que é quase um género por si próprio – o que mais chama a atenção. Não se discute aqui as capacidades cognitivas da verdadeira Shirley, longe disso, mas os diálogos, cheios de cinismo e de uma suposta sabedoria que Decker põe na boca de Moss, é de fazer qualquer um se enterrar na poltrona.

Numa das cenas onde o marido (Michael Stuhlbarg) e a personagem de Moss discutem, ele tenta convencê-la a desistir do livro. Afinal, segundo ele, ela não conhece suficientemente a sua personagem (o livro é inspirado na história real de Paula Jean Welden, que desapareceu misteriosamente em 1946). Então, num momento de explosão catártica, e sem qualquer ponta de ironia, a Shirley de Moss grita dos seus pulmões: “Você não sabe a quantidade de meninas desaparecidas pelo mundo que só querem ser vistas!” E a discussão acaba aí, como se a frase fosse largada em forma de argumento vencido. Só conseguimos imaginar o constrangimento da verdadeira Shirley Jackson, se ainda fosse viva e tivesse que presenciar tamanho disparate.

Depois do muito celebrado “Madeline’s Madeline”, um dos mais brilhantes e originais filmes dos últimos anos, e que também deu o ar da sua graça aqui nesta Berlinale no ano passado, Decker se aventurou em adaptar a biografia da escritora Shirley Jackson. Autora de filmes de terror, a americana de São Francisco ficou conhecida após a publicação do conto “The Lottery” em 1948, pela revista New Yorker. A história macabra, que causou uma polêmica danada na altura da publicação, descrevia um ritual passado numa pequena comunidade no interior dos Estados Unidos, onde anualmente um dos seus membros era selecionado aleatoriamente para ser apedrejado até a morte.

O filme de Decker estreou na nova secção competitiva Encounters, criada como uma plataforma para divulgar e incentivar filmes ousados que apresentem novas formas de narrativas. O problema é que o storytelling criado para o novo filme de Decker parece ter muito pouco de ousadia. Ao querer dar continuação ao abstracionismo que era tão vibrante e alucinatório em “Madeline’s”, a autora se fecha numa armadilha de exercício de estilo que ofusca e oprime o seu filme.

Claro que a tentativa de desconstruir um género tão formulaico como o biopic é louvável e Decker parece muito empenhada na sua missão. No entanto, as pequenas distrações, como a câmara nervosa que nunca para ou as personagens que parecem enclausuradas numa formatação de manual e nos seus diálogos supostamente sabichões, são suficientes para afetar um material que tinha grande potencialidade.

Queremos com isso dizer que “Shirley” é um mau filme sem qualquer interesse? Nada disso. Josephine Decker já provou que é uma das mais promissoras realizadoras a surgir no cinema americano recente e a sua sede de experimentar e empurrar os limites são realmente admiráveis. O problema é que o novo filme passa tanto tempo a dar piscadelas de olho a si próprio que, quando chega ao final, quem sofre das vistas somos nós, que estamos a revirar os olhos a cada diálogo, embriagados de cinismo com tamanha autocontemplação.

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