O último dia da competição de Cannes se encerra com um dos filmes mais singelos do certame “Showing Up”, retrato de uma artista em crise lidando com o processo criativo e com um pombo que não consegue mais voar..
Foi o filme perfeito para fechar a 75ª edição do festival, a indie hero Kelly Reichardt trouxe à Cannes o seu encantador Showing Up, última colaboração da realizadora americana com a sua atriz e musa Michelle Williams. Um filme para desacelerar, que quer falar das coisas grandes, mostrando as coisas pequenas, destrinchando seus pequenos detalhes, na maior das quietudes.
É a segunda vez que Reichardt vem à Cannes. A primeira foi em 2008 quando mostrou um dos seus filmes mais bonitos, o tristíssimo Wendy and Lucy, na paralela Un Certain Regard. Em 2022 a realizadora é finalmente alçada ao time dos grandes. Já era tempo.
E parece ser o ano de Kelly Reichardt. Depois de mostrar o seu maior projeto até ao momento, First Cow, em competição em Berlim em 2020, a realizadora parece ter por fim arrebentado a bolha indie. Desde o sucesso de First Cow recebeu homenagens em vários festivais pelo mundo, fez parte do júri em Cannes em 2019 quando deu a palma ao Parasitas, recebeu uma homenagem da Quinzena dos Realizadores no último dia 18 onde recebeu o Carrosse d’Or e será motivo de retrospectiva e receptora de um honorário leopardo de ouro em Locarno no próximo mês de agosto. Nada mal para quem tem apenas sete filmes no currículo.
Em Showing Up Williams interpreta Lizzy, uma artista sisuda a se preparar para uma exposição que acontecerá daqui uns dias. Enquanto tenta se concentrar em produzir as peças para a vernissage, tudo à sua volta revela-se distração. O gato a exigir comida e atenção, a mãe para qual ela trabalha em part-time no escritório da faculdade de belas artes, o irmão que também é artista mas que devido aos constantes problemas mentais, a mãe chama-lhe “génio”.
No meio desse aparente caos desorganizado, um pombo ferido, que o gato de Lizzy tratou de trazê-lo para dentro de casa, passa a ser o centro das atencões na rotina da artista. Primeiro ela tenta se livrar dele atirando-o pela janela (“vá morrer em outro sítio”) mas depois que o pássaro é encontrado pela vizinha e senhoria que mora logo ao lado, Lizzy vê-se tendo de cuidar do pássaro ferido.
Showing Up é quase uma versão moderna de Mrs Dalloway, sobre uma mulher em crise a se preparar para um importante evento mas pelo caminho se debatendo com o processo criativo e com todas as pessoas que estão ao se entorno. Assim como se propunha a investigar a masculinidade dos seus homens no filme de 2020, aqui a realizadora quer investigar o processo criativo e a composição do mito do artista.
Dificilmente um filme pequeno e discreto como este ficará dentro do palmarés que será entregue amanhã à noite, mas também não importa muito. Só gesto da atenção dedicada à “descoberta” de Reichardt em Cannes já é de considerável valor, posicionando uma das mais interessantes realizadoras da última década no lugar que ela de fato merece.