“Listen” – O Cru e Cruel Real

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Na sua crueza descolorida, “Listen” (2020) é uma exposição dura da cegueira administrativo-burocrática da Ordem e Máquina Estatal. Nele, Ana Rocha de Sousa arquiteta um comentário desencantado e enegrecido acerca das dicotomias contemporâneas da verdade e da aparência, do Outro e do Fora/Externo e desenha uma reflexão sobre o valor social da Família (nos seus estados binários de agregação/desagregação, separação e reunião), o sacrifício pessoal feminino e a sempre continuada luta contra a(s) adversidade(s).

Um corpo de corpos: a Família como centralidade. Na pequenez e no aperto de uma casa, a família é aconchego e corpo social fundacional. No espaço outro, a espacialidade da terra estrangeira, que sentem e esperam como sendo um plano de melhoramento e de acréscimo de vida, é o corpo-família que é teia de afetos e rede de interconexões sempre multidirecionais e de peso equivalente. Entre dois subespaços da casa, dois pais e dois filhos, duas cenas de envolvência e religação: Bela (Lúcia Moniz) atenta, com preocupação, ao modo como o aparelho auditivo da sua filha Lu (Maisie Sly) não funciona – de todo – impossibilitando-a de ter um mínimo de auralidade conectiva; enquanto isso, Jota (Ruben Garcia) brinca e tenta dar leite à sua bebé Jessy (Lola Weeks/Kiki Weeks), ainda que o segundo objetivo lhe saia frustrado. De um lado, a noção de um partir, do outro, a de um não conseguir.

O aparelho auditivo é objeto e máquina, é mecanismo, tem função de ligação e comunicação com os outros que são sempre corporalidades não entendedoras de um modo/forma de estar de um alguém que é um outro corpo, um corpo não (ou fracamente) auditivo. Os gestos mãe-filha são marcas e figuras da comunicabilidade e do afeto. Essas imagens-afeto, grande plano da mãe, grande plano da filha, preocupação/desolação, tomadas num espaço minúsculo que é uma porta atrás de Bela e um espelho à frente de Lu, afirmam a espacialidade do próximo, em que as figurações dessa outra língua que é o gestual matizam a necessidade de conforto mútuo, apesar da assunção de que a falha maquinal – a do aparelho auditivo – é absolutamente definidora da prova pela qual a família passará. Se entre a imagem-face de preocupação de Bela e a imagem-face de desolação de Lu se configura uma previsão da dificuldade material – não só como a relação desse maquinal com a formação do discurso comunicativo de Lu, mas também como a sua qualificação enquanto objeto de valor monetário elevado – também aí se materializa um regime social de agregação: não mais do que a percepção de que aquele outro – o objeto – não funciona, não há ali nenhuma acusação, de mãe a filha, ou desculpa de filha a mãe. Se mais se possa encontrar alguma impaciência, no modo como Jota lida com a não consecução das suas tentativas de alimentar Jessy, mais clara se torna a noção de que é a diferença na sua forma comunicativa, não ocorre ali nenhum desligamento das razões-afeto que configuram o regime de agregação dos corpos unitários no corpo social que é a família.

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Assim começa Ana Rocha de Sousa, com o estabelecer de uma base de figuração social, centralizando-a na junção (agregação) dos corpos-afeto e dos corpos-ligação. Figura social essa que será, ao longo do filme, a forma/modo da sua própria salvação. O dia é, ele também, de grande importância: Bela lembra Jota de que a Segurança Social – desde logo dita enquanto entidade sem face, mas com a face da sua própria construção como não-face – chegará às 16:30, para uma visita analítica das condições de sustento da família. Bela segue para o exterior, com Lu e Jessy. Jota fica, avisado de que deve acordar Diego (James Felner), o filho mais velho, o qual está, nesse dia de dias, adoentado e de cama.

As duas linhas narrativas que se dividem e espraiam pela manhã definem a postura de um cinema social escalpelizador, clínico e mostrador que Ana Rocha de Sousa, enquanto autora, tece: a) Bela leva consigo as duas filhas – Lu a tentar manter-se à mesma velocidade com que a mãe empurra o carrinho de Jessy – por entre as ruas apertadas do seu bairro, onde pouco mais desponta do que um cinzento matizado e a descoloração deprimida das construções de cariz “social”, as quais, de tanto encerradas em si mesmas, assim ainda mais se distanciam, como paredes ligadas a outras paredes, do centro citadino mais próspero. Esse, aliás, que o filme nunca mostra ou pode mostrar, pois não o pode ou consegue fazer, dado esse mesmo afastamento de classe; Jota – sinalizando já a sua situação de desemprego ou precariedade laboral – acorda Diego e relembra-o de que tem que ajudá-lo a arrumar a casa. A conversa entre pai e filho é entabulada num misto de português e inglês, mostrando que o campo de comunicação familiar é um reflexo do lugar indefinido que ocupam nesse outro espaço que é o país estrangeiro: é Diego português ou inglês de nascença? Se de origem inglesa, deverá ele falar a língua do país onde nasceu ou do país de onde os pais vieram? Jota pede-lhe: em casa, que fale “…em português…”. A casa é, ainda mais claramente, espaço do dentro, fora da outra espacialidade que é a do fora, a que deveria ser de acolhimento, mas é antes de desafetação social. O que mais têm para si é essa outra casa, a sua língua, e mesmo essa será sempre um modo de hibridez e entrecruzamento constante; b) Bela deixa Lu e Jessy sentadas num canto escondido de um beco, sobre papel de cartão, de modo a poder entrar no supermercado somente com o carrinho de bebé. No interior do estabelecimento, ela rouba pão, fiambre e queijo, os quais esconde no carrinho de bebé. Para disfarce, compra o que pode pagar, uma garrafa de água de 90 pennies. Regressa para junto dos filhos e alimenta-os com o roubado, sentados na paragem de autocarro que os levará ao centro de Londres; Jota e Diego arrumam a casa. Ao tomar banho, Diego mais afirma do seu sentir-se mal. Vomita e arde em febre. Tem que voltar a se deitar; c) Ao chegar à escola da Lu, Bela pede-lhe que não refira que o seu aparelho auditivo se partiu. Nota-se a desconfiança e o desdém da parte da educadora de Lu, quando fala com Bela. Já no centro, Bela limpa uma casa. É a única empregada na família. Jessy permanece com ela. Por videochamada, Bela pede dinheiro aos pais. Não o podendo fazer de forma rápida, aconselham-na a pedir um apoio à Segurança Social. Bela não quer fazer. Já tem a família sobre vigilância dos Serviços Sociais. Não lhe quer dar razões para mais ainda; Jota vela por Diego, refresca-lhe a compressa húmida que tem sobre a testa; d) Bela, na loja de aparelhos auditivos, tenta saber do preço e condições de compra de um novo dispositivo para Lu. O Lojista (Jon Rumney) explica-lhe acerca da necessidade de haver prova de salário ou a existência de um fiador. De volta a escola, para buscar Lu, Bela fica a saber que a filha teve que ir ao hospital, no seguimento de uma queda. E que, mais ainda, marcas lhe foram encontradas no corpo. No caminho para casa, Bela pergunta à filha se ela lhes contou que o aparelho auditivo se havia partido. Lu responde que o que lhes disse foi que a mãe lhe havia pedido para não contar – o que tinha acontecido ao aparelho – porque era um segredo e, como tal, não o contou. Quando chega a casa, Bela, em desespero, roga a Jota para que partam antes da chegada dos Serviços Sociais. Ele vê as marcas no corpo de Lu. Mas não sairá. Ficará à espera. Ficarão à espera. Nada fizeram de mal.

A duração de uma manhã, período temporal curto mas clarificador de uma posição de classe, de vivência das dificuldades, da necessidade de furto para alimentação, do elucubrar do discurso deceptivo para não fomentar o surgimento de problemas mais graves. O que Ana Rocha de Sousa mostra é um afundamento, um afastamento, uma identificação-posição de uma forma do outro, do empobrecido e do inadaptado. Os ecos da outra crise parecem ainda pesar sobre a família: terão eles emigrado para Inglaterra no seguimento do convite para emigrar feito pelas próprias autoridades governamentais portuguesas, no início da década, como solução para a pobreza entretanto encontrada? O que mais claramente se desprende dos seus atos é o sentido de dignidade, apesar da (aparente) indignidade – o roubo – de quem é posto perante a parede que afasta, uma divisão que é ideológica e económica, de quem se vê assim figurado, retraçado e de novo configurado como o outro que fará o trabalho não qualificado, que receberá o mínimo salário, que terá uma ocupação falseada, de horário volúvel e interrompido e remuneração ainda mais – e demasiado – infrequente.

A narratividade da fatalidade que impenderá nessa mesma tarde é desenvolvida pela dureza fabuladora da manhã: a classe trabalhadora fará a limpeza, à tarde será desprovida (limpa de) de sentido de completude, através do desfazer do seu núcleo fundamental, a unidade interconectante do seu corpo-família. Quando, exatamente às 16:30, os cinco desenham um plano-enquadramento normalizado da família, em tensão-espera, esse tableau é uma necessidade por antecipação imagética, não é necessário por corpo de si mesmo. A sua agregação como uma figura única não precisa da encenação de se sentarem no sofá de uma forma artificializada, é muito mais um medo do inevitável, porque esperável e porque fatalmente claro, de que a máquina que aí vem, orgânica mas maquinizada no seu cegar de protocolo e burocracia. Por mais que o possa ter dito – que não fizeram nada – mesmo Jota pressente, porque sabe, que a visita técnica não correrá bem.

Quando a campainha toca, Jota sai, com Jessy nos braços, ficam Bela, Diego e Lu para trás, sentados no sofá. Primeira separação, primeiro afastamento que permitirá a desagregação física do corpo-união e que possibilitará a sua quebra e destroçamento por puxão e apartamento. Quando entram, os Serviços Sociais já não são outra coisa do que a força institucional que mal cumprimenta e que antes traz um documento biopolítico, um que é lido – “os seus filhos são considerados como estando em perigo” – e que efetiva a identificação de um estado que nunca é verificado nesse ato que é o da visita – aliás, ela nunca ocorre – o que se desenha é uma tomada de assalto, pela força documental e pela presença policial. Jota é encostado a um canto, retiram-lhe Jessy dos braços, instigam-no a assinar o documento de desmembramento da sua família, pois, tal como lhe diz o Funcionário dos Serviços Sociais (Brian Bowell), na sua mentira de executor burocrático da frieza maquinal da Ordem Estatal, isso ”será melhor”. Jota não o faz, corre atrás da filha, já saída para o fora-de-campo, já roubada, já destrinçada, já desunida do seu núcleo-casa e núcleo-família.

Bela, fugida para o quarto, com Diego e Lu, dá-lhes o seu número de telemóvel, escrito numa folha de papel, pede-lhes que o memorizem, para que a possam contactar. Numa encenação do puro terror, não um terror de cinema de género, mas num cinema de construção de um horror do real, Ana Rocha de Sousa coloca uma mãe perante a situação desesperada de ser defensora última do corpo que não quer ser desmembrado, mas que pouco poderá fazer para que assim não o seja. Põe-se entre o Funcionário do Serviços Sociais e o polícia e os filhos que estão encostados entre o armário e a parede. Aos outros dois, o que ela lhes pede é que se afastem: “back away!”, diz ela, “these are my kids!”, nunca dando as costas aos que lhe querem levar os filhos, antes sempre se colocando como uma barreira, uma linha limite de uma bolha que ali construiu – num instante rápido e evanescente – uma que é imaginária, impossível de manter, na sua frágil configuração do momento impossivelmente resolúvel. O polícia restringe-a. Dobra-a. Põe-se sobre ela. Ela fica prostrada sobre a cama. Luta ainda, pelas palavras, mais uma vez: “these are my children”. O Funcionário dos Serviços Sociais aproxima-se de Lu e Diego e, esticando a mão suavemente, nega, pela imagética do gesto, a própria imagem do que esse ato é: um mecanismo do engano. A confiança da mão dada de Lu é a materialização inocente da mentira e da trapaça que é a suposta solução que representa aquela figura (des)funcional (nada traz, tudo leva). Com a luta de Diego e a paz de Lu, os dois são levados. Jota sobe ao quarto, pede ao polícia que liberte Bela.

Ficam os dois, destituídos da sua prole, tirados dos corpos-sangue que são os que deles se fizeram vida. Fatal real, dor emanada – por entre uma cenografia apertada, descolorida e iluminada pela dureza de uma janela de luz fria – demasiado afastada de um sentido de pergunta e resposta: o que veio de fora, não questionou. Só tirou. A família foi suprimida, foi posta – burocraticamente – em processo de desagregação. Esta sequência-dia com que começa “Listen” é o bloco narrativo mais extenso do filme, é concentração temporal, enquanto que a restante temporalidade fílmica é arquitetada por salto elíptico. Ao centralizar o contar na particularidade demorada de uma manhã e uma tarde funestas, Ana Rocha de Sousa assume uma postura de vinco, de amostra, de veiculação de uma ânsia e de um método cego que a recobre e magnifica em horror e abatimento total. Um tempo concentrado – de dor – só se resolverá com um outro tempo, já ele distendido e recortado.

A máquina administrativa – neste filme tomando o nome de Serviços Sociais – esconde e fecha a comunicação: dias passam antes da possibilidade do encontro. Quando ele ocorre, é feito sob medidas impeditivas: o Funcionário tem que estar presente, não podem discursar em português, nenhum deles pode exprimir linguisticamente o seu sentir – o amor, a falta que sentem uns dos outros – e Bela não pode comunicar gestualmente com Lu. Ao fazê-lo instintivamente, o Funcionário termina a visita, ao fim de apenas um minuto. É o protocolo a afirmar a desumanização de um outro método: o de querer destroçar, a todo o custo, o ato de religação, já que as crianças, após terem sido retiradas da família, entraram imediatamente no sistema e estão destinadas para adopção. Ao não deixar falar, ao definir regras de impossibilidade comunicativa, ao cortar o discurso, o protocolo é um que tem como fito a diluição da figura-família, na simulação de um processo gradual, não imediato, quando efetivamente o é. Mais ainda, e mesmo antes dessa visita-simulacro, já os pais tinham sido definidos, por carimbo dos Serviços Sociais, como “agressivos” e assim entendidos – como agentes de agressividade – o que só mais tornou, aos próprios olhos dos primeiros, como benigna a sua função de separadores, divisores e reformatadores de corpos.

Se, de um lado, Bela e Jota procuram ajuda junto daqueles que, tendo feito parte do sistema, usam o conhecimento que têm dos seus métodos para o manietarem e resgatarem dele quem pode ser resgatado, tais como Ann Payne (Sophia Myles), do outro, o processo segue célere e Jessy é posta junta de uma outra família, logo seguida de Diego. A diluição está conseguida: Jessy não lembrará os seus verdadeiros pais, de tão nova que é deles tirada. Somente os corpos efetivamente ligados à ideia de união familiar é que regressam dessa diluição. Diego foge da sua família adoptiva – e pagas elas que são para adoptarem os filhos dos outros, logo ela é fuga-prejuízo e dotação orçamental não cumprida – é posto numa casa segura e a mentira necessária e ardilosa é posta em andamento, a de dois pais indignados pelo facto de o sistema burocrático não saber onde está o seu filho.

Chegada a audiência jurídica, numa outra forma simulada de justificar a processualidade do decidido previamente, é Bela quem mostra, numa articulação discursiva que atordoa os burocráticos sociais, que o processo tido sempre se baseou num equívoco: a de que as marcas no corpo de Lu eram as de batimento parental quando, na verdade, o são de uma espécie de condição de pele chamada purpura e que nunca mais quiseram eles, Bela e Jota, de que os Serviços Sociais os ajudassem na aquisição de um novo aparelho auditivo para a sua filha. A sua acusação é clara: não se quis separar o percebido do ocorrido, tomou-se a aparência pela realidade, fez-se real o que era falso, fez-se uma imagem negativizada para construir uma desagregação, sempre mantendo uma outra imagem, a de que a possibilidade de justiça seria possível. Ao seu manifesto acusatório, nenhum burocrata tem como responder. É-lhes permitido o regresso de Lu. Diego viaja separadamente, por meio clandestino, de modo a seguirem depois todos para Portugal.

Quando lhes é entregue Lu, Bela diz a Anjali (Kiran Sonia Sawar) que ela, sabedora da perversidade do sistema, não fez o suficiente para impedir que Jessy lhes tivesse sido tirada. O sistema fica, o sistema manter-se-á. Entre ela e o colega sem nome, só mudam os leitores e os atores de um guião-método-simulacro que identifica, cataloga, separa e dispersa o(s) corpo(s) do Outro, aquele mesmo que para ali vai para ter uma melhor vida. Comentário final de Ana Rocha de Sousa: a porta que fecham, à saída da casa de acolhimento, é uma que efetivamente separa, uma que marca definitivamente um estado de coisas: quer-se o fechamento total, querem-se as costas voltadas, quer-se o deixar para lá da porta. Que se feche a porta, por agora, se assim se o quer. Talvez ainda ela se possa abrir, se quem a quer fechar aos outros se disponha simplesmente a…ouvir…

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