Comparativamente com o ano anterior, o balanço cinematográfico que faço deste ano é bastante positivo. Foi um ano produtivo para o cinema português e chegaram às nossas salas de cinema filmes de elevada qualidade, oriundos de diversos países. Das produções de Hollywood muito pouca coisa de relevante, demonstrando que de ano para ano esta máquina está sem ideias há bastante tempo. Destaco duas excepções, “Birdman” e “A Ponte dos Espiões”, que demonstraram alguma modernidade e originalidade. Quanto às cinematografias das restantes fronteiras, em 2015 destacaram-se, por exemplo, filmes como “O Sal da Terra”, “Relatos Selvagens”, “Phoenix”, “A Ovelha Choné”, “O Pequeno Quinquin”, “É Difícil Ser um Deus”, “O Principezinho”, “O Espirito de 45′” e “As Asas do Vento”. Só pelos filmes referidos em cima o ano já valeu a pena. O que significa que se tivesse que atribuir menções honrosas, estas seriam entregues a estes filmes que referi.
Mas o ano de 2015 não se ficou apenas por estas cinematografias. O cinema português conquistou muita coisa neste ano, apresentando-se com um novo fulgor e imaginação. Em 2014 elegi “Cavalo Dinheiro”, de Pedro Costa, como o Melhor Filme do Ano e em 2012 elegi “Linha Vermelha”, de José Filipe Costa, com a mesma distinção (“Tabu” de Miguel Gomes ocupou o quarto lugar do Top 10 desse ano). Para 2015, considerei incluir três títulos nacionais entre os melhores do ano, “Montanha”, “As Mil e Uma Noites” e “João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei”.
A adolescência, a censura, a política, a crise, a depressão e o próprio cinema são os temas que mais se destacam neste Top 10. Outra curiosidade, pela primeira vez não é incluído nenhum filme produzido nos EUA numa lista deste género. Esta é a minha lista (escolha pessoal) dos 10 melhores filmes de 2015, filmes que me tocaram, sensibilizaram e emocionaram de alguma forma (filmes que estrearam nas salas de cinema portuguesas entre janeiro e dezembro de 2015).
1º – Montanha, de João Salaviza (Portugal)
Era um dos filmes nacionais mais aguardados do ano e as expectativas elevadas confirmaram-se. Depois de três curtas-metragens de sucesso (“Arena”, “Cerro Negro” e “Rafa”), João Salaviza afirma-se como um dos grandes do cinema português, pois a sua primeira longa-metragem, “Montanha”, é o melhor filme do ano! “Montanha” é um retrato íntimo sobre a adolescência, os desgostos da vida e o primeiro amor. Salaviza escala uma difícil e íngreme montanha e são poucos os que chegam ao topo dela. Este jovem cineasta deu provas mais do que suficientes de que filma como poucos. Essa montanha, esse símbolo, surge-nos logo no primeiro plano do filme, reflectido no corpo de David. E Salaviza filma com brilho o corpo. O filme vive muito disso também. O realizador tem sabido passar este sentimento de mágoa, através de um clima de afecto e emoção, como poucos. Com um elenco excecional o realizador fez um achado notável com o jovem ator David Mourato. Os silêncios, as imagens, as personagens, tudo em “Montanha” transmite muita maturidade e inteligência por parte do realizador. Aguardam-se coisas muito grandes por parte de Salaviza. “Montanha” é a grande maravilha cinematográfica de 2015.
2º – Táxi, de Jafar Panahi (Irão)
Em segundo lugar tinha que ficar outra maravilha do ano, vinda do Irão, pelas mãos de um dos grandes cineastas da atualidade, Jafar Panahi. O cineasta iraniano torna a tirar partido da sua situação de clandestinidade e de censura imposta pelo seu país, que o proíbe de filmar durante vinte anos. De uma forma criativa, inteligente e simples, Panahi cria mais uma vez um filme surpreendente e comovente sobre a liberdade de expressão e sobre o próprio cinema. Um filme em modo viagem (de táxi), guiado pelo próprio Jafar Panahi pelas ruas de Teerão, que serve para ir conhecendo um pouco do quotidiano e da política do Irão. Através desta viagem, o realizador acaba por conseguir capturar o espírito da atual sociedade iraniana. Mesmo estando impossibilitado de filmar, este é já o seu terceiro filme clandestino que reflete novamente a sua situação muito difícil, quer pessoal, quer profissional. Jafar demonstra mais uma vez uma grande coragem e uma grande criatividade, num filme que abrange temas como a política nacional, a vida na cidade de Teerão e a liberdade de expressão no cinema. Apesar de serem temas bastante sérios e dramáticos, o realizador transmite sempre um grande sentido de humor. Um filme obrigatório e sem dúvida um dos melhores do ano.
3º – João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, de Manuel Mozos (Portugal)
Manuel Mozos surpreendeu muito com o seu último filme, em que faz uma homenagem a um homem amado e também uma grande homenagem ao cinema. Fala-nos de João Bénard da Costa, que foi crítico de cinema, ensaísta, ator e diretor da Cinemateca Portuguesa durante 18 anos, num filme que é um excelente retrato sobre a sua vida e um luto da sua morte. Este é um documentário, talvez o melhor do ano, que guia o espectador pelas imagens e memórias de um homem que foi uma das mais importantes figuras do cinema em Portugal. O realizador evoca o espirito de Bénard da Costa, o seu fantasma, que nos guia pelos lugares mais importantes da sua vida. Adoptando uma narrativa diferente, invulgar, Mozos filma belíssimos planos e recorre à imagem de arquivo, de filmes onde entrou como ator e de filmes que mais o marcaram (como por exemplo o monumental “Johnny Guitar” de Nicholas Ray). É portanto um filme de fantasmas, pois é de morte que este filme nos fala. Fazendo a morte parte da vida, é de vida que fala este poético e belíssimo ‘filme de morte’. “Fundamental é a vida. A vida continua sempre. É de vida que fala este filme de morte.”. Este é um dos mais belos e interessantes filmes do ano que deve ser visto.
4º – As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes (Portugal)
O filme português mais badalado do ano foi “As Mil e Uma Noites”, em Portugal e fora de fronteiras. Este épico social inspira-se na estrutura do livro “As Mil e uma Noites” para criar uma epopeia portuguesa sobre a crise de Portugal. Distribuído comercialmente em três partes (“O Inquieto”, “O Desolado” e “O Encantado”), esta trilogia faz um retrato real e comovente do nosso país, com uma visão bastante crítica que o realizador Miguel Gomes assume. Os três volumes também funcionam como obras soltas. Portugal vive um período de violenta austeridade, atormentado por um governo e uma Troika que empobrecem o povo português de forma intencional, ao serviço do capital financeiro internacional. E o realizador apresenta um ponto de vista crítico em relação a isso, traçando um retrato profundo de um país socialmente devastado. No seu conjunto, esta é uma obra arriscada que retrata um país que vive socialmente desesperado. Esta é por ventura a mais promissora trilogia do cinema português, que é agora revitalizado por Miguel Gomes. “As Mil e Uma Noites”, um retrato único e comovente de Portugal, é a derradeira obra de Miguel Gomes e uma das maravilhas mais cativantes e ousadas do cinema português.
5º – Tangerinas, de Zaza Urushadze (Georgia)
“Tangerinas” é mais outro filme belo, que carrega uma forte e clara mensagem antibélica, de uma guerra-civil que matou milhares de pessoas e deixou regiões desertas na Abecásia (região do Cáucaso no norte da Geórgia). Uma narrativa centrada em quatro personagens distintas e complexas que tentam aprender a por de parte as suas diferenças. O realizador pretende evidenciar que as tensões étnicas e ideológicas não deveriam levar a conflito. Sem momentos de grande ação, de forma subtil e por vezes com humor, o filme tenta mostrar que em qualquer guerra há sempre um ser humano. Não há um lado vencedor e um derrotado, não há heróis e vilões. “Tangerinas” é um filme com evidentes mensagens pacifistas e de tolerância, que o desfecho final consegue demonstrar. Este filme histórico sobre a Guerra da Abecásia é profundo e humanista, gerando uma interessante reflexão sobre estas temáticas.
6º – O Presidente, de Mohsen Makhmalbaf (Georgia)
O realizador iraniano Mohsen Makhmalbaf, a viver há muitos anos no exílio, tem tido um papel ativo na luta contra a ditadura no Irão. Uma parábola sobre a queda de um ditador num país fictício, que a quando se dá a revolução ele vê-se obrigado a fugir do país com o seu neto. Nesta travessia pelo país, o velho (ditador), acompanhado pelo seu neto, vai-se apercebendo das consequências das suas políticas na população, nas suas condições de vida. Este filme, que é uma crítica política, acaba por nos demonstrar que uma ditadura e revolução podem por vezes ser a mesma coisa, a partir do momento em que os revoltosos conseguem ser tão selvagens como o ditador, o que mostra o lado mais negro do ser humano, a vingança. “O Presidente” foi filmado na Geórgia com atores georgianos, mas é uma sátira à ditadura do Irão e uma metáfora do presente e do futuro. O filme tem referencias nítidas à obra de Chaplin (“O Grande Ditador”, “O Garoto de Charlot” e “Luzes da Cidade”), acompanhado por momentos musicais, em tom de comédia, que lembram por vezes Kusturika. “O Presidente” é um filme simplista, atual e uma das mais belas surpresas do ano.
7º – O Conto da Princesa Kaguya, de Isao Takahata (Japão)
Esta bonita e emocionante história de amor, “O Conto da Princesa Kaguya”, uma das últimas obras dos estúdios Ghibli, é um dos mais belos filmes de animação dos últimos anos. Uma homenagem à humanidade, à vida e ao nosso planeta. O autor de “O Túmulo dos Pirilampos” (1988) consegue, nesta que é provavelmente a sua última obra, um visual encantador e delicado. Esta animação é muito mais do que um “conto de fadas”. Faz uma reflexão sobre a nossa espécie. O trabalho de animação de Isao Takahata é deslumbrante. Um traço simples, mas com um toque delicado e colorido. Uma obra que transmite muito amor, pelo ser humano e pelas coisas que nos rodeiam, com um sentimento nostálgico e de saudade de que tudo acaba, tudo tem um fim. Foi das melhores estreias nas nossas salas de cinema em 2015 e o melhor filme de animação do ano. A despedida de Takahata e dos estúdios Ghibli já deixam muitas saudades.
8º – Minha Mãe, de Nanni Moretti (Itália)
“Minha Mãe” é um filme intimista e solitário que o cineasta Nanni Moretti presta homenagem à sua própria mãe. Enquanto filmava “Habemus Papam” (2011) Moretti perdeu a mãe, tal como Margherita, a protagonista do filme, que perde a mãe durante as filmagens do seu filme. Este é um melodrama autobiográfico sobre a espera da morte. Todo o filme prepara as personagens e o espectador para algo que é inevitável, a morte. Esta é logo anunciada, ao contrário do que acontece em “O Quarto do Filho” (2001), em que há uma perda inesperada. Em “O Quarto do Filho” o luto é dos pais e em “Minha Mãe” o luto é dos filhos. A protagonista (interpretada por Margherita Buy), uma realizadora famosa em plena crise pessoal e criativa, é claramente um alter-ego de Moretti, que aqui faz o papel do irmão, afastando-se assim um pouco da história, o que é natural dada a carga emocional e pesada do tema, neste que é o seu filme mais pessoal. “Minha Mãe”, a décima segunda longa-metragem do cineasta italiano, é um dos filmes mais emocionantes do ano, com um sentimento trágico e deprimente, mas que tenta equilibrar-se pontualmente com humor. Algo a que já estamos habituados a ver nos filmes de Moretti, joga com as emoções do espectador de uma forma extraordinária. Com este filme mantêm-se o estatuto de um dos mais conceituados cineastas do novo cinema italiano.
9º – Leviatã, de Andrey Zvyagintsev (Rússia)
O aclamado cineasta russo de “O Regresso” (2003) (venceu o Leão de Ouro em Veneza) e de “Elena” (2012) (venceu o prémio especial do Júri Un Certain Regard), regressou em 2015 com mais um monumental trabalho, com referências bíblicas nas entrelinhas, “Leviatã”. Neste drama o realizador faz uma representação corrupta do Estado Russo e demonstra que a relação entre Estado e cidadãos é bastante complexa. Representa uma sociedade fatalista com sonhos destruídos e um país sem moral e ética. As forças que dominam são a política, a religião e a justiça, todas com interesses próprios, destruindo vidas e sonhos dos cidadãos. O protagonista é chantageado e vive com medo, criando um efeito de revolta no espectador. As imagens são belíssimas neste drama que retrata uma luta inglória de um cidadão comum contra o sistema. Andrey Zvyagintsev continua a ser um dos melhores realizadores russos da atualidade.
10º – Deus Branco, de Kornél Mundroczó (Hungria)
Para fechar este Top 10 de 2015, encontra-se “Deus Branco”, outra sátira política. Um misto de melodrama familiar, de thriller e de terror, “Deus Branco”, é ao mesmo tempo uma violenta e bela parábola, que nos comove e inquieta, deixando uma evidente crítica à sociedade. O realizador húngaro explora aqui temas como a perda da inocência e a vingança, mas sobretudo pretende ser moralista e dizer-nos de uma forma fria e crua que devemos tomar uma atitude. O filme pretende inquietar e reflectir sobre a desigualdade e as injustiças entre raças e ao mesmo tempo sobre os maus tratos aos animais. Sempre em constante movimento, a câmara raramente estabiliza, criando um ritmo acelerado que é acompanhado por uma agradável banda sonora. “Deus Branco” tornou-se numa surpresa agradável a estrear nas salas portuguesas, que não será facilmente esquecido por quem o vir.