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Veneza 2023: “Hollywoodgate” choca ao mostrar tudo o que já sabíamos

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O aguardado documentário do egípcio Ibrahim Nashat prometia mostrar ao mundo imagens nunca antes vistas da realidade do Afeganistão sob o controle dos Talibãs. O que vimos, em vez, foi a confirmação de tudo o que já sabíamos, ou suspeitávamos, há muito tempo. Ainda assim, o efeito das suas imagens é avassalador.

A retirada das tropas americanas do Afeganistão em agosto de 2021 marcou um momento crucial na história do país, com os talibãs rapidamente tomando o controle de Cabul e da maior parte do país, encerrando efetivamente uma presença de 20 anos das forças dos EUA e aliadas. Manchetes com imagens desoladoras de pessoas amontoadas em aviões em fuga se espalharam pelo mundo, encapsulando uma mudança abrupta que mergulhou o Afeganistão no caos e na incerteza. 

É aqui que Ibrahim Nash’at entra em cena. O realizador egípcio inicia o seu documentário “Hollywoodgate”, que estreia Fora de Concurso, explicando que chegou a Cabul apenas alguns dias após a retirada americana, portando apenas sua câmara e um tradutor afegão. Após semanas de intensas negociações, ele consegue obter acesso a dois oficiais talibãs que atuavam no complexo da Hollywood Gate, um grande galpão desmantelado pelos americanos que os talibãs afirmam ter sido uma base evacuada da CIA.

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Com um tom de ameaça e antecipação, Nash’at nos informa que, em troca desse acesso exclusivo, os talibãs fizeram uma exigência crucial: “que eu mostre ao mundo a imagem dos talibãs que eles querem que eu veja. Mas por entre os portões do que eles queriam que eu visse e o que eu de fato vim fazer aqui, permita-me mostrar o que vi”. O filme abrange o ano inteiro em que Nashat passou com esses dois homens: Malawi Mansour, um comandante da Força Aérea recém-designado, e M.J. Mukhtar, um jovem tenente com um forte sentimento anti-americano. Pouco a pouco ele vai se infiltrando, como uma mosca na parede, até que a entourage à volta de Mansour sinta-se (quase) confortável com a presença da sua câmara.

Quando um deles reage surpreso ao notar a presença de Nash’at, logo no início do filme, Mukhtar explica que ele está fazendo um filme para mostrar ao mundo como é realmente a vida no Afeganistão. “É como um filme, só que com pessoas reais”. Os talibãs acreditam que Nash’at fará um filme propaganda para o regime, portanto, restringem seu acesso à filmar a pobreza do povo afegão ou em áreas que consideram críticas à sua imagem. Em uma cena arrepiante, ouvimos um dos talibãs dizer ao outro: “se ele (Nash’at) não tiver boas intenções, morrerá em breve”. Apenas ouvir essa frase faria o mais sensato dos realizadores a abortar as filmagens. Em vez disso, Nash’at fica e filma tudo o que consegue ter acesso.

Enquanto seguimos os talibãs no seu dia-a-dia, por entre reuniões e encontros para decidir a organização do país, notamos que há um esforço quase cômico em serem vistos como bons rapazes pela câmara de Nash’at.

Uma das preocupações mais urgentes com o ressurgimento dos talibãs era o destino dos direitos das mulheres. Sob seu governo anterior, antes de 2001, as mulheres afegãs enfrentaram severas restrições à educação, emprego e vida pública. A comunidade internacional assistiu ansiosamente ao relato de mulheres sendo expulsas de escolas e locais de trabalho, temendo a erosão dos direitos conquistados com dificuldade.

Logo após a retomada dos talibãs em 2021, eles tentaram apresentar uma imagem mais moderada para o mundo ocidental, prometendo respeitar os direitos das mulheres dentro da sua interpretação da lei islâmica e expressando disposição em cooperar com outras nações. No entanto, o ceticismo persistiu devido à história de opressão dos talibãs, deixando o ocidente muito cauteloso quanto às verdadeiras intenções deles. Como sabemos hoje, as mulheres não apenas foram proibidas de frequentar escolas e universidades, mas também de visitar vários espaços públicos, como parques, ginásios e, desde a semana passada, o parque nacional mais popular do país.

Em uma cena em que Mukhtar é questionado sobre essas questões, e comentando sobre o uso obrigatório do véu especificamente, ele responde com uma analogia contada pelo seu pai, dizendo que “se alguém lhe oferecer um pedaço de chocolate, fora da embalagem e que estava no chão, você não o aceitará com certeza, porque ele está sujo”.

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Nash’at não é propriamente um realizador, mas um jornalista freelance da estação alemã Deutsche Welle e também da Al Jazeera. Talvez seja essa a razão pela qual ele nunca tenta interferir no que está registrando. Ele é apenas um observador do que se desenrola diante de sua lente. No entanto, embora suas imagens não revelem novos segredos, e só confirmam o que já era conhecido de todos, o efeito de choque é avassalador.

O clímax do filme ocorre quando os talibãs mostram a Nash’at todo o arsenal que eles encontraram dentro do complexo que dá título ao filme. Na correria da retirada das suas tropas, os americanos deixaram para trás um vasto conjunto de equipamentos militares e armamentos, que rapidamente caíram nas mãos dos talibãs. Isso incluiu tanques, veículos blindados, armas de fogo e aeronaves da Força Aérea Americana, dando aos talibãs acesso a capacidades militares que eles jamais pensariam ter. Esse influxo de equipamento militar avançado levantou preocupações sobre o novo poder militar do grupo e seu potencial não apenas para consolidar o controle no Afeganistão, mas também para representar ameaças à segurança da região.

Ao final do filme, a certeza que nos fica é que Mansour e os talibãs são um perigo para o mundo e chegaram com sede de vingança e controle. Enquanto helicópteros americanos recém restaurados dominam os céus sobre um desfile militar na presença da China, Rússia e Irã, a sombra da incerteza paira mais densa do que nunca. Com cada dia que passa, as mulheres são relegadas a cidadãs de segunda classe, e os ativos militares fluem em direção aos talibãs.

O documentário de Nash’at, mesmo sem desvendar segredos inéditos ao mundo, lança luz às complexidades e os desafios profundos que assombram os afegãos, deixando o futuro de uma nação em suspenso. Neste novo cenário, as apostas são altas, e as esperanças são tênues, iluminando o caminho à frente com uma urgência indiscutível.

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Veneza 2023: “Hollywoodgate” choca ao mostrar tudo o que já sabíamos
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