“The Zone of Interest” de Jonathan Glazer é o grande candidato à palma de 2023

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Estreia o grande filme da competição de 2023: o monumental e sombrio “The Zone of Interest”, quarto filme do realizador Jonathan Glazer, expondo a banalidade do mal de uma forma nunca antes vista. Mica Levi, colaboradora habitual do realizador, completa a fantasmagoria sonora com sua música complexa e aterradora.

Alguém ontem no Twitter se perguntava se algum dia Jonathan Glazer seria capaz de fazer um filme que não fosse figurar nas listas de best of de sempre. A hipérbole parece mais que merecida depois de revelado a sua última experiência cinematográfica The Zone of Interest ontem à noite no Palais em Cannes. Com apenas quatro filmes no currículo, “Sexy Beast” (2000), “Birth” (2004) e “Debaixo da Pele” (2013) o realizador construiu um invejável culto de seguidores e desenvolveu um estilo único e sedutor que sempre gravitou entre o experimental e o misterioso. As expectativas para o novo filme eram grandes.

“The Zone of Interest” estreou em Cannes sob a aclamação unânime da crítica. O filme abre num longo plano com o écra completamente negro, enquanto a música perturbadora de Mica Levi (já retornaremos à ela) nos prepara para o que vem a seguir. O filme é uma adaptaçao livre do livro homónimo de Martin Amis, sobre o cotidiano da família de um comandante nazi encarregado de dirigir o campo de concentração de Auschwitz.
A seguir a este genérico de abertura macabro, somos então apresentados ao primeiro plano do filme: um dia ensolarado à beira do lago onde observamos uma família, de longe, no que parece ser apenas mais um dia de verão em suas vidas pacatas.

Rudolf Höss (Christian Friedel) é o pai, que apenas de calção de banho à beira do rio, brinca na água enquanto sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) e seus filhos aproveitam a paisagem bucólica sob os sons delicados dos pássaros e da natureza. De volta à casa, tudo parece correr sem muitas perturbações na vida dessa família. As crianças brincam no jardim, a mãe se preocupa com suas flores e as tarefas domésticas e o comandante Höss vai para o trabalho, logo ali ao lado, onde tem de resolver problemas logísticos do campo de concentração que está a gerir, como por exemplo, analisar a eficácia da nova câmara de gás, da mais alta tecnologia. A frieza calculada em como esta cena é apresentada,  como se tivéssemos sido expostos a uma surreal realidade paralela, é de fazer tremer a espinha.

“The Zone of Interest” é um filme nunca antes visto sobre a Segunda Guerra, mas não é propriamente um filme sobre a guerra. Aqui Glazer inverte o foco da história, focando o seu centro narrativo no dia-a-dia aparentemente normal da família do comandante, enquanto o zumbido insuportável dos fornos crematórios, as rajadas de tiros ou os gritos de horror só são ouvidos lá no fundo.
O filme traz à memória o claustrofóbico “Filho de Saul” do húngaro László Nemes, Grand Prix em Cannes em 2015, que também tinha como dispositivo narrativo a eliminação dos horrores da guerra do campo visual, para assim escancarar o absurdo da corrupção moral e da miséria humana.

Glazer quase que filmou um filme de terror, só que num processo narrativo que se discorre no mais cristalino dos silêncios, eventualmente interrompido pelos sons do horror que o Holocausto produziu, sempre lá no fundo, filmado com a mesma distância que o realizador filma as suas personagens, sem nunca chegar muito próximo delas, a sugerir que não pretende humanizá-las ou lhes dar algum tipo de complexidade.

Este tipo de silêncio, aliás, que é explorado minuciosamente com uma impressionante edição de sound design de Johnnie Burn, onde os ruídos brancos são quase todos abafados para dar a devida dimensão aos detalhes que importam, é uma bela demonstração do cinema sensorial que sempre foi o de Jonathan Glazer (quem não se lembra da famosa cena da ópera no fabuloso “Birth” com Nicole Kidman?). E a colaboração de longa data com a inglesa Mica Levi, vem para confirmar que “The Zone of Interest” não seria o mesmo filme sem a sua música.

Antes de seguir carreira com nome próprio, Levi foi a vocalista e cérebro principal da banda indie Micachu & The Shapes, que nos deu hits grudentos como “Lips” e “Golden Phone” e, já ali, as suas criações sonoras experimentavam com o negrume de um abismo desconhecido justaposto com o absolutamente catchy e familiar. Assim como a banda sonora assombrosa que criou para o filme anterior de Glazer “Debaixo da Pele” a música de “The Zone of Interest” é uma das grandes protagonistas do filme e ela permanece com o espectador muito depois do filme já ter terminado.

Glazer filmou a banalidade do mal como nunca vimos antes, onde os protagonistas parecem ter integrado a barbárie como parte funcional do cenário, numa espécie de alienação moral que somos obrigados a vivenciar ao mesmo tempo que estes personagens. O realizador explica que queria filmar “o contraste entre alguém que se serve de uma chávena de café na cozinha enquanto outra pessoa é assassinada do outro lado da parede”. E este contraste é precisamente a mais perfeita caracterização que define a última obra-prima do realizador.

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