100 Anos de Orson Welles (Parte 2)

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A originalidade da sua obra

Welles foi sempre inovador nos seus trabalhos e tentou romper com os padrões estabelecidos de Hollywood para dar o máximo impacto ao seu trabalho.

Podemos por começar por assinalar as histórias trágicas que contava na tela. Ao contrário do padrão hollywoodiano, que preferia o happy ending clássico, Welles contou sempre histórias trágicas, geralmente sobre homens poderosos que acabavam por perder tudo e ver os seus impérios a ruir.

Desta abordagem ao tema das suas histórias, podemos agora referir a originalidade da sua escolha narrativa. Mais uma vez ao contrário dos padrões da indústria, Welles preferia utilizar uma linha narrativa que não fosse linear. Geralmente, Welles conta-nos a história a partir do seu momento final, para depois explicar tudo o que levou até lá. Welles também lança mistério nas suas histórias, não esclarecendo com total clareza certos momentos ou elementos da narrativa, deixando-os entregues à própria interpretação do espectador. É claro que os seus recursos a nível cinematográfico e o seu estilo de realização potenciavam estas mesmas características presentes no argumento. Welles era extremamente criterioso a escolher os planos que utilizava para mostrar a ação ao público. Tentava criar uma atmosfera muito própria para cada momento. A cinematografia dos seus filmes é, neste sentido, criadora de ambientes sombrios (os seus filmes são antecessores do film noir). Ele podia apresentar-nos uma negociação iluminando-a em contra-luz, para que não se esclarecesse bem a intenção do personagem e para que ficasse uma neblina quanto ao objectivo final de uma determinada ação. Em momentos de tensão ou na presença de um agente antagonista ou da catarse de um personagem, Welles criava sombras muito demarcadas, recortando a cara do personagem, conferindo-lhe um aspecto tenebroso.

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Este recurso, era, na altura em que trabalhava, quase impensáveis, pois não permitiam ao público ter a total noção da ação que decorria e não conferiam segurança ao espectador, que se embrenhava no ambiente, tal era a sua profundidade. Mas hoje estes recursos são cânones para muitos realizadores que pretendem criar tais ambientes.

Aliada à sua ilustração da cena muito própria, Welles procurava pontos de vista que ilustrassem as figuras de forma a torna-las mais ou menos demarcadas. Foi dos primeiros realizadores a procurar planos picados e contra-picados, saindo da estética do ponto de vista ao nível do olhar humano. Ele podia utilizar isso para tornar uma figura em algo insignificante, ou então engrandecia uma determinada figura. O uso destes pontos de vista também variava consoante o desenrolar da narrativa. No apogeu do personagem principal, a sua figura era geralmente filmada com um plano contra-picado, transformando-o num ser imponente. Mas, consoante a sua queda se desenrolava, Welles utilizava cada vez mais planos picados, ou então inseria o personagem em salas monstruosas, para que parecesse minúsculo, potenciando assim a sua queda e transformação.

Outra das imagens de marca de Welles era a cenografia. Vindo do teatro, ele tinha especial cuidado com o cenário de cada cena, mas utilizava tipos de cenário muito pouco comuns na sua época. O primeiro era o cenário vazio, em que não existia nenhum objecto em segundo plano. Este tipo de cenário era geralmente utilizado nas cenas de maior mistério e suspense. Nestes cenários em particular, eram as próprias personagens que formavam o cenário, recortadas pela luz que as iluminava. Utilizando como exemplo a cena de “O Mundo a Seus Pés”, em que os jornalistas discutem o significado da última palavra de Kane (em que se utiliza o contra-luz), verificamos que, em determinados planos, são as personagens que formam o cenário, recortadas pela luz e fundindo-se com o fundo negro.

Outro recurso cenográfico nas obras de Welles são os espelhos, utilizados para criar uma infinidade de personagens e aumentar quase infinitamente a profundidade de campo. Geralmente utilizadas em cenas de catarse, possibilitam a noção de infinidade no espaço, isolando totalmente as figuras nelas próprias.

Um outro ex-líbris seu era o plano de sequência. Já só vistos nos seus últimos filmes, eram planos que davam uma grande noção de ação continuada. Há um em particular que ilustra bastante bem o objectivo de Welles ao empregar estes planos, que é a sequência de abertura do filme “A Sede do Mal”, em que o realizador optou não só por fazer um mero plano de sequência, mas em torna-lo uma rápida transição entre variados pontos de vista. Um método que só se popularizaria anos mais tarde e que revelava o génio de Welles.

Todos estes recursos eram, para a época, altamente inovadores e à margem dos padrões de Hollywood. Orson Welles procurou uma forma muito própria de fazer filmes e de contar as suas histórias. A sua marginalidade era tal que, ao longo da sua carreira, encontrou sempre imensos entraves com os produtores com quem trabalhava (esteve associado num dos grandes estúdios da época, a RKO Films), chegando mesmo a ter que abandonar determinadas opções que gostaria de tomar. Mas é essa mesma questão que nos ajuda facilmente a perceber a originalidade e a tenacidade de Welles, que quis inovar nos seus filmes, para os tornar em obras muito próprias. Os seus filmes, quando comparados com qualquer um dos outros feitos na mesma altura, são sempre totalmente distintos. Foi por essa razão que o trabalho de Welles perdurou e se tornou uma referência para muitos cineastas de hoje.

Análise da Obra

Após o visionamento de “O Mundo a Seus Pés” (1941), pode-se concluir que se trata, na verdade, do ex-libris cinematográfico da filmografia de Welles. Brilhantemente executada a todos os níveis, é, porventura, a obra que estabelece um cânone de Welles para ele próprio. Nenhuma das suas outras obras sai desta linha, apresentando apenas algumas variações.

Em primeiro lugar, considere-se a questão lançada logo no inicio do filme, que marca a narrativa (não linear) e que lança a grande questão do filme. A última palavra de Charles Kane, “Rosebud”. O que é “Rosebud” e o que representa no filme? Esta é a primeira camada de mistério que Welles lança sobre a linha temporal e é também o grande elemento narrativo cuja interpretação é deixada ao cargo de cada espectador em particular.

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No momento final do filme, a palavra Rosebud surge gravada num trenó em chamas que Kane possuiu durante a sua infância. O que pode então significar este elemento (já que toda a história gira em torno da tentativa de decifração deste mistério)? Muito provavelmente, Rosebud surge como um desejo de voltar a uma infância perdida. Ligando esta particularidade à vida e obra de Welles, ela pode ser conotada com o facto de Welles ser órfão. Mas pode também apontar-se isso como sendo demasiado autobiográfico. Outra interpretação seria um paralelismo com a vontade de voltar a um período áureo de inocência, perdida com o advir da grnadeza da figura de Kane e das múltiplas facetas que surgem nesse personagem com o desenrolar do tempo. Rosebud representaria, portanto, esse desejo de regressar a uma simplicidade perdida. Em qualquer dos casos, o mistério funciona tão bem na narrativa fílmica como na própria força simbólica do filme.

Outro aspecto da análise que é igualmente importante é a forma como é ilustrada a ascensão e queda deste magnata da comunicação social. Ilustrado como um herói durante o seu período magnânimo, a figura de Kane surge sempre no centro de grandes espaços (como na cena do discurso) e enquadrada a partir de um ponto de vista contra-picado.

Já durante a sua queda, a figura de Kane vai perdendo este destaque em termos de enquadramento, surgindo geralmente aprisionado em espaços pequenos e em si próprio (como na cena sequência em que se olha ao espelho, já no momento mais trágico da sua queda, quando se vê confrontado com a perda de tudo o que possuía). Este percurso está também associado a inúmeros aspectos simbólicos, tais como a construção inacabada do seu palácio (que acaba por reflectir aquilo que pode ser interpretado como a construção de uma ruína) ou a incapacidade por parte da sua segunda mulher (Sarah Kane) em completar um puzzle (associada ao facto de a personalidade de Kane nunca ser clarificada, dada a sua transição entre múltiplas facetas). O mistério em que os jornalistas se encontram a discutir o significado de Rosebud também é um aspecto que lança a primeira e grande interrogação do filme.

Envoltos numa escuridão quase absoluta, nunca encontram resposta, e sempre que se dirigem a alguém para obter alguma informação, os espaços estão sempre ilustrados como salas demasiado amplas, em que era empregada uma técnica que utilizava a profundidade de campo para ampliar essa sensação de infinitude, sugerindo a dúvida e a noção de perda no espaço. Também se procurava uma atmosfera muito própria para cada momento. A cinematografia destas cenas é, neste sentido, criadora de ambientes sombrios, que se inserem bem na definição do film noir. Uma determinada negociação nunca era mostrada num ambiente de conforto visual, para que não se esclarecesse bem a intenção de determinados intervenientes, criando uma neblina, quanto ao desenrolar final de uma determinada ação. Em momentos de tensão ou na presença de um agente antagonista ou da catarse de um personagem, eram conferidas sombras proeminentes, transformando a figura humana em algum fantasmagórico.

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Além disso, as várias fases da vida de Kane vão sendo contadas em espaços cada vez mais soturnos. A sua infância é contada por um colaborador do seu pai adoptivo (numa sala luxuosamente decorada) e a sua decadência é-nos relatada por Sarah Kane, num bar tipicamente noir, ilustrando um certo emaranhamento numa escuridão trágica.

Isto está bem patente nos momentos finais de Kane e na cena final no interior da sua casa, quando finalmente vemos o objecto que seria “Rosebud”. O espólio artístico do protagonista está espalhado pela sala enorme, revelando a tragédia e a frivolidade das acções do magnata ao longo do tempo. A ruína está, deste modo, inserida naquele cosmos imenso da sala. O homem que finalmente se propõe a revelar o significado de Rosebud não se encontra com a cara iluminada, contribuindo para engrandecer ao máximo este mistério, e antecipando o acontecimento da queima do trenó.

Na montagem, o percurso do personagem principal também é potencializado. Inicialmente composta de planos de curta duração e mais ritmados (demonstrando o vigor inicial da juventude de Kane), esta temporização vai sendo cada vez mais longa, demonstrando a perda de vigor, por um lado, e o constante advir de momentos de dúvida. Os últimos planos são, sem dúvida mais longos e dotados de características mais ligadas aos ambientes tétricos. São geralmente planos de câmara fixa, que, por vezes, não nos revelam a totalidade de uma ação.

Analisando a narrativa, podemos concluir então, que, a opção de mostrar inicialmente a morte de Kane é um recurso que vem, igualmente à linha orientadora das restantes vertentes fílmicas, contribuir para o enaltecimento do mistério da última palavra de Kane. As constantes analepses são formas de ir completando o puzzle que forma a história deste personagem, se bem que (e lembrando os de Sarah Kane) não chega a ser concluído. È igualmente notória uma forte ligação com o a tragédia clássica, dada a importância que é dada à catarse e ao facto da história nos ir sendo contada pela mão de diversos intervenientes.

Através desta breve análise conseguiu-se compreender porque razão este filme foi visto como um dos mais completos da sua época e figura como uma das obras melhor executadas da história do cinema. Os recursos utilizados e as inovações continuam ser fonte de admiração e inspiração ainda hoje, atestando, de forma clara, o génio de Orson Welles.

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“O cinema não tem fronteiras nem limites. É um fluxo constante de sonho”. Orson Welles

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