“Era Uma Vez em… Hollywood”: Para acabar de vez com a verdade

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Com Spoilers

William Burroughs escreveu que os americanos necessitam de ter tudo sob controlo, e que se eles pudessem, entravam no seu próprio corpo para tratar da digestão e remover os dejectos com uma pá. É uma premissa difícil de rejeitar. Todavia, caso não aceitássemos o seu rigor literário – submetendo-a a juízos de verdade –, talvez nos apetecesse responder-lhe com uma pergunta: então e tu, Burroughs, serás por isso menos americano? Não participa a obra dele nesse sistemático descontrolo da moral e dos sentidos que hoje muito genericamente designamos “contracultura americana”? Os estilos de vida libertários, Jack Kerouac, a assimilação de saberes não-ocidentais, os Grateful Dead, a paranóia induzida por uma bad trip, o regresso falsificado à Mãe Natureza, ou – por que não? – a família Manson – serão desprezáveis, periféricas, todas estas experiências de abdicação do controlo? E onde se situará, por sua vez, o centro da América: nas narrativas homeostáticas dos westerns, ou na insaciável voragem dos estúdios que os produziam?

Felizmente, a Quentin Tarantino nada disto importa. Estas são as ansiedades de um mundo acabado, o mundo da identidade, que no ano de 1969 encontrava-se já demente, a soltar os seus últimos suspiros. Não nos surpreendemos, portanto, quando em “Era Uma Vez em… Hollywood” (2019), Tarantino filma um hippie da seita Manson a andar a cavalo como se fosse um xerife – e, de facto, naquele preciso momento ele é um xerife. Já os cowboys, neste filme, vemo-los chorar, gaguejar, estão perdidos nas suas falas, e não preenchem as formas ideais que lhes são exigidas. Como consequência, multiplicam-se os rejeitados, os impuros, os estropiados. Sabemos que a carreira do actor Rick Dalton está ferida de vilania, e que o seu duplo, Cliff Booth, é outro aleijado – aquele passado obscuro, possivelmente criminoso, certamente “incontratável”, pesa sobre a sua virilidade como uma mão ou perna em falta (nem por acaso, ele também é um veterano de guerra…). Booth experimenta, aliás, a mais tenebrosa ironia deste fracasso generalizado do identitário, sublimada na constatação de que o território ocupado pelos seguidores de Charles Manson, tornado num viveiro incestuoso de paranóia e violência, servia outrora como local de filmagens para westerns. Nada de inédito aqui: na falência das velhas narrativas, instalou-se esse apocalipse de transição que é ainda (ou cada vez mais) o nosso, onde só um discurso fascista como o de Manson poderá querer descobrir uma nova unidade das coisas.

Tarantino não está, pois, minimamente interessado na “verdade” da América. A sua missão enquanto cineasta não é – nunca foi – reflectir o que quer que seja, mas sim efectuar cortes e colagens, descobrir na pertinência das ligações uma nova imagem, bela e potente, de preferência. No entanto, esta abordagem artesanal, por si só, nem sempre se revelou proveitosa. Tarantino assinou demasiados filmes medíocres porque os fazia a partir do lugar do cinéfilo e não do cineasta: como se lhe bastasse somente baralhar os seus filmes preferidos e voltar a distribuí-los com poucas ou nenhumas alterações. Nessas ocasiões, na ausência de colagens e cortes decisivos, ele escondia-se por detrás de guiões insuflados a pensar na citação fácil e no efeito “memorável”. Mas em “Era Uma Vez em… Hollywood” nem se dá pelo argumento – as coisas sucedem-se num silêncio inteligente e intuitivo, um modo menor que só estaria ao alcance de Tarantino no seu nono filme, obviamente crepuscular (mesmo que ele não cumpra a promessa de se ficar pelos dez).

Será inevitável falar do tão controverso fim do filme, até porque é nele que reside a chave para compreender esta nova posição de Tarantino como um autor que superou a insuficiência do verdadeiro, que é, por extensão, a insuficiência da História. E trata-se, sim, de uma nova posição – porque o que ele fez a Hitler em “Sacanas Sem Lei” (2009) era uma provocação infantil, em comparação com o que ele (não) faz a Sharon Tate neste filme. A Wikipédia diz-nos que na noite de 8 de agosto de 1969, Tate e um grupo de amigos seus foram brutalmente assassinados numa invasão domiciliária conduzida por três membros do culto de Charles Manson; mas não é isso que nos é dado a ver em “Era Uma Vez…” Neste filme, História e ficção são literalmente vizinhas, o que faz com que o trio de lunáticos entre na casa errada e tenha a fatal infelicidade de se cruzar com Cliff Booth, que, como qualquer herói de Tarantino, é uma arma letal tenuemente disfarçada de ser humano. Vitória, vitória, acabou a História: os assassinos históricos são assassinados pelo cinema, Sharon Tate sobrevive e tem ainda uma porventura longa carreira de actriz pela frente.

O que distingue este final feliz da já citada sequência de “Sacanas Sem Lei” é a recém-adquirida complexidade genealógica da visão de Tarantino. Para a entendermos, retome-se a crítica devastadora ao historicismo clássico que é empreendida por Foucault no seu célebre ensaio “Nietzsche, a Genealogia e a História” (1977). Segundo ele, a metodologia historicista comum, por estar ainda demasiado apegada a uma interpretação metafísica da matéria histórica, dedica-se a procurar secretamente as verdades essenciais dos povos, ignorando, mesmo nas suas práticas mais científicas, o absurdo da contingência, “a exterioridade de acidentes” que está na origem daquilo que somos e conhecemos. Em alternativa a esse historicismo demagógico, que em todo o lado encontra relações de necessidade e remissões a um discurso sobre a origem das coisas, Foucault propõe a genealogia: uma abordagem à matéria histórica que tem em vista, justamente, a dissipação das identidades e a dissolução da continuidade histórica.

Onde outros terão visto um desenrolar causal e evidente dos acontecimentos, o genealogista detém-se nos acasos, erros e desvios de último minuto, que permitiram que uma coisa tomasse forma e outra fosse engolida pelo silêncio histórico. Não será isto, esta melancólica descontinuidade da História, aquilo que o filme de Tarantino afirma até ao último minuto? Quando o rosto profano de Leonardo DiCaprio irrompe no mito d’”A Grande Evasão” (1963), quem não acredita, por instantes, num mundo em que Rick Dalton foi o escolhido para o papel? E quem não se atreve, de facto, a imaginar um futuro onde Sharon Tate teria escapado incólume às alucinações da família Manson? É a primeira vez que sentimos Tarantino verdadeiramente angustiado com estas questões: o que era gratuito em “Sacanas Sem Lei” torna-se trágico em “Era Uma Vez…”, precisamente porque tudo se processa nessa incessante fábrica do pós-histórico chamada Hollywood. Fábrica onde tudo faz História(s): tanto os westerns como os filmes de Tarantino.

Tex Watson, um dos assassinos de Sharon Tate, terá dito, na fatídica noite do crime: “I’m the devil, and I’m here to do the devil’s business”. Com o seu filme, Tarantino só o pôde vencer porque foi mais diabólico que ele. “Era Uma Vez em… Hollywood”, que muitos já catalogaram como “irresponsável”, será talvez a mais importante heresia a estrear em sala este ano.

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