Penso que teria cerca de 13 ou 14 anos quando “descobri” Alan Rickman. Se bem me recordo, foi pouco depois de ter entrado no mundo de Harry Potter e dele fazer a minha infância. Com um elenco absolutamente fantástico, principalmente no que toca aos mais velhos, os sirs Richard Harris, John Hurt e Kenneth Branagh, Warnick Davies, Richard Griffits ou John Cleese, a Dame Maggie Smith, Julie Walters ou Fiona Shaw, entre tantos outros que a estes se juntaram nos filmes seguintes; entre eles estava também um actor para mim desconhecido, mas por pouco tempo. Não sei ao certo o que foi que me atraiu nele; a voz, certamente, de um refinamento tal que quase lhe conseguia adivinhar uma textura, o ritmo do seu discurso com o qual enchia o ecrã e nos mantinha suspensos até dizer a última palavra, ou o seu rosto fechado carregado de expressão; o que é certo é que a partir daí Alan Rickman tornou-se o maior dos meus heróis.
Os anos seguintes foram em grande parte dedicados à busca incessante e à necessidade, no mínimo, obsessiva, de ver todos os filmes em que Alan Rickman entrava, o que, na altura, não se afigurava tão fácil como hoje em dia, principalmente porque muitos destes filmes eram, e são, infelizmente, praticamente desconhecidos em Portugal, não existindo, em muitos casos, nem edições Portuguesas, nem a possibilidade de os encomendar. Falo de filmes como “Truly, Madly, Deeply”, “Closet Land”, “Close My Eyes”, “Dark Harbor”, “Rasputin”, “O que Deus Criou”, “An Awfully Big Adventure”, “Mesmer”, em suma, uma lista interminável de filmes, alguns melhores que outros é certo, mas com qualidade mais do que suficiente para serem conhecidos pelo público português.
Ora, deparando-me com a dificuldade de ter acesso à maioria da sua filmografia, “iniciei-me” no papel de fã de Rickman com os seus filmes mais conhecidos, e por isso, mais fáceis de arranjar: “Die Hard”, “Robin Hood: Príncipe dos Ladrões” nos quais interpreta dois dos melhores vilões de sempre do Cinema e dois dos pouquíssimos papéis por que é conhecido e reconhecido. Não me interpretem mal, ele é absolutamente fabuloso em ambos; em “Die Hard”, o primeiro filme da sua carreira, Rickman estabelece um novo paradigma de vilão, o do vilão-gentleman, educado, bem vestido e eloquente, algo que hoje em dia é mais do que banal, mas que na altura, em 1988, foi uma verdadeira lufada de ar fresco nos filmes de acção, por outro lado, nenhum outro depois de Rickman (à excepção de Hopkins com o seu Hannibal) o conseguiu fazer tão bem como ele.
Quando lhe foi oferecido o papel de Sheriff de Nottingham em “Robin Hood” terá confessado a um amigo que aceitá-lo significaria destruir a sua carreira, destruir no sentido em que a sua carreira ficaria limitada àquele tipo de papéis, e de certa maneira tinha razão, pois apesar dos muitos e diferentes papéis que interpretou, nunca deixou de ser o Sheriff de Nottingham ou Hans Gruber para o grande público.
Curiosamente, foi nesse mesmo ano de 1991 que protagonizou um dos seus filmes mais desconhecidos, naquela que foi, para mim, de longe, uma das suas melhores interpretações: “Closet Land”. Neste filme da também ela desconhecida Radha Bharadwaj passado todo ele numa sala de interrogatório e com apenas dois actores, com reminiscência de 1984 de Orwell ou O julgamento de Kafka (embora Bharadwaj insista que se trata de uma ideia original), Rickman partilha o ecrã com Madeleine Stowe, interpretando, respectivamente, interrogador e interrogada, ou melhor, abusador e vítima. Não há nomes, um local definido, ou qualquer referência exterior, sendo que toda a acção se centra no brutal interrogatório da personagem de Stowe, autora de um livro infantil que é tido como propaganda contra o governo.
Não sendo um grande filme, é, no entanto, um palco fabuloso onde Rickman e Stowe brilham de uma maneira que torna quase criminosa a ausência de audiência e de reconhecimento pelos seus papéis. Mas o reconhecimento nunca foi algo que preocupasse Rickman, que disse inclusive “São os papéis que ganham prémios, não os actores”, que a juntar à sua conhecida recusa da condecoração como Cavaleiro da Ordem do Império Britânico, são provas de uma personalidade humilde e muito fiel às suas raízes da classe operária.
Nos anos seguintes, entrou em filmes como “Mesmer” (onde interpretou o famoso Franz Anton Mesmer, um dos preconizadores do hipnotismo), “Sensibilidade e Bom Senso” onde faz de Coronel Brandon naquele que é talvez o papel mais romântico da sua carreira (a par de Jamie em “Truly Madly Deeply”), “Rasputin”, um filme feito para televisão pelo qual ganhou um Emmy, um Screen Actors’ Guild e um Globo de Ouro, naquele que foi um dos pouquíssimos papéis principais da sua carreira, e “Michael Collins” de Neil Jordan, onde deu vida à figura histórica de Eamon DeValera.
O ano de 1997 marca a sua (auspiciosa) estreia como realizador com “O Convidado”, nomeado para um Leão de Ouro em Veneza e vencedor de dois prémios honorários no mesmo festival. Com os papéis principais entregues a Emma Thompson e à mãe desta, a também ela actriz, Phillida Law, o filme conta a história da relação entre mãe e filha à qual as actrizes trazem, naturalmente, uma dimensão muito realista e verdadeira.
Um filme de grande sensibilidade, “O Convidado” é também a primeira de várias provas da admiração de Rickman pelas mulheres. Criado pela sua mãe, que, descreve: “Ela era uma tigresa. Conseguia fazer tudo….todas aquelas tarefas de mulher, cozer, cozinhar e limpar – tratava de todas essas coisas sem nunca sequer pensar nisso porque tinha sido treinada pela sua mãe. (…) Mas ela tinha de sair e trabalhar, tinha vários empregos, foi treinada em vários outros e reinventava-se constantemente”. A sua preferência por heroínas foi também notória, quando alguns anos mais tarde, pegou nos escritos de Rachel Corrie (activista pró-palestiniana morta aos 23 anos por um bulldozer israelita na faixa de gaza) e os adaptou na sua polémica peça “My Name is Rachel Corrie”, ou mais recentemente, em 2014, ao ser um dos argumentistas e realizador do filme “Nos Jardins do Rei” no qual Kate Winslet interpreta a personagem fictícia de uma arquitecta paisagística que tem a tarefa de construir um jardim no Palácio de Versailles para Louis XIV, interpretado por Rickman.
Aproveitando a anterior referência aos palcos, interessa salientar algo que até agora não foi referido; é que Rickman foi primeiro, e acima de tudo, um homem do teatro. Foi nos palcos que deu os seus primeiros passos no mundo da interpretação, sendo que foi o seu papel como Valmont na peça “Les Liaisons Dangereuses” que o levou, com 42 anos, para interpretar o primeiro de muitos vilões, em “Die Hard”. Mas o teatro foi sempre a sua primeira casa, e era aí que Rickman se sentia realmente à vontade, não ficando nunca preso a um estereótipo como acontecia no cinema. Rickman foi Hamlet, Marc Anthony, Mephisto e o delicioso Elyot na comédia de Noel Coward “Private Lives”.
Infelizmente, o teatro passa sempre um pouco ao lado para a grande maioria de nós que não tem a oportunidade de ir ver as peças ao West End e à Broadway, e por isso contentamos-nos com os filmes que no caso de Rickman são uma pequena parte do seu grande repertório. Mesmo assim, posso dizer que tive a oportunidade de ver uma gravação feita por um espectador de “Private Lives” e alguns excertos de “Les Liaisons Dangereuses”, os elogios dos críticos são tudo menos exagerados.
Em 2001 Rickman interpretou pela primeira vez aquela que é e será sempre a sua personagem mais acarinhada pelas novas gerações, a de Professor Snape na adaptação da saga de Harry Potter. Foram oito as vezes que Rickman vestiu o manto negro para dar vida a um dos heróis da literatura fantástica dos nossos tempos, e oito as vezes que os fãs deliraram com a perfeição com que Rickman vestiu esse manto e com que no fim de tudo nos deixou com um “Always” que, agora que já não está entre nós, nos toca mais do que nunca.
Obrigada Alan Rickman.