Nunca um filme capturou tão bem a essência de uma ansiedade atual que se desenvolveu a partir do confinamento dos últimos dois anos. Depois dos aterrorizantes “Nocturama” e “Zombie Child” o realizador francês retorna com um pequeno filme de proporções gigantescas.
Enquanto a competição principal da Berlinale não deslancha, fomos descobrir as hidden gems espalhadas pelas seções paralelas do festival. Foi assim que chegamos ao mais novo filme do realizador francês Bertrand Bonello, o brilhante e inclassificável Coma, que passou na seção competitiva Encounters.
Fazendo uma estranha mistura entre terror psicológico, animação, imagens de arquivo e algo entre o documentário e a não-ficção, Coma explora o comportamento online e o consumo de conteúdo através dos olhos de uma adolescente, protagonizada por Louise Labeque, que já aparecia no anterior filme do realizador, Zombie Child. Trancada em seu quarto, sua única relação com o mundo exterior é virtual. Quando a adolescente dorme, nós somos convidados a explorar os seus sonhos e pesadelos. E assim, navegando por entre sonho e realidade, ela é guiada por uma misteriosa e enigmática YouTuber, Patricia Coma.
Apesar de Bonello afirmar que seu filme não é sobre a pandemia, tem-se a impressão que nunca um filme capturou tão bem a essência dessa ansiedade que se desenvolveu a partir do confinamento dos últimos dois anos. Ou talvez até de uma ansiedade que já estava instaurada muito antes da Covid ter apanhado todos de surpresa.
Bonello abre o filme dirigindo-se diretamente à sua filha Anna, que acabou de completar 18 anos, a mesma idade dos protagonistas de Coma. O filme surgiu de uma ideia para um curta Letters To My Daughter e assim, através de uma carta endereçada à filha, o realizador abre Coma a dizer que o filme é um gesto de amor para ela, e que é o que ele apenas pode oferecer neste momento turbulento em que “toda a gente tem algo a dizer”.
Coma não é apenas um filme de lockdown sobre o que um pai que teme por sua filha e pelas gerações mais novas, apanhados de surpresa no meio de uma atormentada era de pandemia. É também um filme que reflete sobre a questão do livre arbítrio num mundo onde tudo é controlado. E a personagem da YouTuber Patricia Coma (Julia Faure), que periodicamente interrompe a narrativa e entra em cena para oferecer conselhos à adolescente, é uma peça chave que ajuda a descodificar as mensagens do filme.
A YouTuber, aliás, é responsável pelo humor negro e insano que equilibra os momentos sérios do filme. Num dado momento, ela anuncia que seu próximo vídeo será sobre o verdadeiro significado das músicas de Michael Jackson afinal “o que nós pensávamos que era pedofilia, na verdade era filantropia”.
Um pequeno filme brilhante, inclassificável e muitas vezes também hilário, que definitivamente já nasceu garantindo o seu lugar nos cânones dos filmes de culto.