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DocLisboa 2018: Entrevista a Ricardo Moreira sobre “Cidade Marconi”

“Cidade Marconi”, a primeira-longa metragem de Ricardo Moreira, foi dos filmes que mais me surpreendeu nesta edição do DocLisboa. Experimental e arrojado, é um testemunho de que ainda há quem arrisque pensar o cinema. Mais do que documento do real, “Cidade Marconi” documenta o potencial plástico do cinema através de uma reflexão rigorosa entre som, campo e fora de campo, entre real e artificial, entre promessa, concretização, metamorfose e suspensão da paisagem que valeu a Ricardo Moreira o Prémio Revelação – Canais TVCine.

Sinopse: A perceção da relação entre uma música e uma fotografia é desconstruída pelo estudo de uma paisagem. A paisagem de uma colina marcada pelo impasse dos diversos projetos imobiliários que pretendem a sua transformação.

Nuno Sousa Oliveira: “Cidade Marconi” é um documentário arrojado para uma primeira longa-metragem, mesmo no âmbito do experimental. De onde nasceu a vontade para arriscar num projeto destes?

Ricardo Moreira: A Serra de Carnaxide é um sítio que eu sempre conheci à distância e que acabou por me despertar interesse por ter lá um projeto imobiliário que nunca mais avança. O título “Cidade Marconi” é uma referência a essa parte da colina, embora o filme se foque na Serra de Carnaxide enquanto um todo e faça referência a outros projetos que a têm ou tiveram como alvo. Ou seja, sendo uma paisagem em mudança, mas estando a mesma num impasse, parecia-me interessante explorar cinematograficamente a tensão entre transformação e suspensão.

Além disso, eu já tinha atravessado a Serra de Carnaxide há muitos anos, havendo assim a curiosidade de ver de perto as mudanças na paisagem. Fazer isso por via do cinema permite uma maior disponibilidade para a experienciação do lugar. O cinema tem essa capacidade de acentuar a nossa ligação à realidade.

NSO: E de que forma é que o som e o espaço o influenciam enquanto cineasta?

RM: A construção do filme é necessariamente um resultado da observação e audição dos espaços e dos sons. Por exemplo, as caminhadas na Serra de Carnaxide deram-me a linha de desenvolvimento do filme. Vamos da parte oriental assolada pela transformação até à parte ocidental mais intacta, e o destino de mudança ou impasse de uma acaba por ressoar na outra. Depois, o facto de este ser um espaço ainda por urbanizar, mas envolvido por um cerco urbano faz com que os sons das estradas ou dos aviões tenham um impacto especial para quem os escuta a partir da solidão da colina. Nesse sentido, o filme tenta, de alguma forma, traduzir e fixar essa experiência, nomeadamente através da forma como o som das estradas estendem a nossa perceção do espaço desocupado do plano para um espaço urbano no fora de campo.

Seguindo uma lógica diferente, a parte introdutória do filme chega a jogar mais com o artifício e abstração do espaço e dos sons, na qual a unidade e solidez espácio-temporal do plano-sequência do apartamento acabam por se diluir no artifício, ao mesmo tempo que há uma mistura entre sons ilusórios e realistas. A propósito disso, o contraste entre a introdução e o resto explica-se pela intenção de criar um fluxo que leve o espectador de uma dimensão mais alternativa e artificial para outra onde se sente mais o peso da realidade e da vertente documental.

NSO: Jogos entre o campo e o fora de campo, entre o documentário e o experimental, entre o tempo e o habitar do plano. Como é todos estes elementos se conjugam no seu cinema?

Pode dizer-se que, no geral, todos eles se articulam para traduzir a paisagem em foco enquanto uma interface de várias dimensões, tempos e influências sistémicas (política, negócios…). Por outro lado, servem também enquanto ferramenta de reorganização ou fixação percetiva para que se reflita sobre a nossa relação com a realidade.

NSO: O som diegético e não-diegético têm uma grande importância em “Cidade Marconi” e levanta a questão do que é, realmente, uma banda-sonora: o real ou o artifício? 

RM: Talvez a importância da relação entre o som diegético e não-diegético corresponda à vertente sonora da referida relação entre o real e o artificial, em que a parte mais artificial da construção do filme serve para tornar mais impactante o contraste da dimensão mais associado ao peso do real.

Por outro lado, sendo todo o som pós-sincronizado, incluindo o som ambiente, toda a banda sonora acaba por ser uma construção. Desse modo, nos planos da paisagem, há mais um trabalho de sistematização sonora de uma dada realidade do que a constituição de cada plano como um documento audiovisual de um dado espaço e tempo.

NSO: Na sua opinião, qual a relação entre exibir um filme como o seu numa sala de cinema e num museu, por exemplo? Estará o nosso público, mesmo o de um festival como o do DocLisboa, assim tão condicionado pela matriz da programação dita comercial?

RM: Não sei até que ponto, mas, pelo menos, eu idealizei o filme para ser visto numa sala de cinema. Não sei bem. Talvez para um projeto como este baste que as pessoas tenham a disponibilidade de ver e ouvir sem estarem amarradas a ideias pré-concebidas de apreciação de um filme.

NSO: Há pouco tempo, estive presente numa sessão pública com Pedro Costa, onde o cineasta disse que atualmente faz-se cinema com muito furor, mas com pouco pensamento. O que me surpreendeu mais no seu filme foi que, apesar de ser um realizador jovem, apresentou já uma maturidade pouco comum…

RM: Se no meu filme o furor é o que se associa à música e à fotografia com uma atmosfera de mistério, então talvez esses elementos se articulem em torno da própria desconstrução do furor, tendo em conta que há uma dissecação meta-cinematográfica da utilização da música e que depois a tensão desta se transfere de uma atmosfera de filme de mistério para a desolação de um filme de paisagem. No fundo, o que convém é que o cinema associe o pensamento às sensações.

NSO: Já tem mais projetos em mente?

RM: Por acaso tenho uma curta feita a partir de planos que não utilizei na longa, mas ainda não decidi se vale a pena mostrá-la. De resto, ainda não sei.

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