Dois grandes filmes na seções paralelas que se utilizam da memória como instrumento de fuga aportam em Berlim. A estreia na realização da americana Tina Satter, o tenso “Reality” e o devastador “The Eternal Memory” da realizadora chilena Maite Alberdi, que há três anos já tinha nos impressionado com o documentário “The Mole Agent”
Enquanto a competição ganha força e movimento nos seus primeiros dias, descobrimos dois dos mais impressionantes filmes do primeiro fim de semana em Berlim. Dois filmes de universos completamente distintos mas que faz uso da memória como instrumento de libertação e fuga.
O primeiro é a impressionante estreia na realização de Tina Satter “Reality”, filme que tem toda a cara de “filme de competição” mas que por alguma razão foi parar na paralela Panorama, de onde até agora está saindo as melhores coisas dessa 73ª edição. É o primeiro filme de Sydney Sweeney após atingir o estrelato global nas séries “Euphoria” e “The White Lotus” e antes de começar as gravacões do remake de Barbarella.
O filme recria uma representação literal da transcrição do interrogatório do FBI da whistleblower Reality Winner e começou a tomar forma quando a realizadora descobriu os registros da conversa entre Winner e os agentes do FBI, os seus ex-colegas. Winner foi uma ex-tradutora freelancer dos Serviços Secretos dos EUA e foi condenada a cinco anos de prisão por vazar material sigiloso para o The Intercept sobre a interferência russa nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016.
A história toda se passa quando ela é confrontada por oficiais do FBI em sua residência em uma tarde de sábado em junho de 2017. O que vemos é a captura de um interrogatório intenso mas quase que disfarçado de uma conversa informal entre os agentes e Reality. As ambiguidades que a realizadora Tina Satter cria entre o trio principal, entre o flerte e o domínio da autoridade, dá uma nova dimensão a uma história que já foi tão escrutinada e mediatizada por toda a mídia global. A maneira minimalista como Satter conduz sua história, fazendo uso verbatim dos diálogos entre os três, explorando os contextos daquele momento, também sugere que as táticas manipuladoras usadas pelos agentes do FBI foram misóginas, podendo até mesmo ter sido consideradas como assédio.
Aqueles que chegam ao filme em busca de uma típica narrativa em forma de biopic “inspirado em fatos reais” ficarão desapontados. O filme é sim, a transcrição integral e exata dos registros da gravação, mas o que Satter está interessada é na teatralidade da situação, como se elaborasse uma investigação própria dos fatos para depois expor o aspecto performativo das relações de poder e da lei e da ordem, instrumento que os norte americanos parecem dominar tão bem. Este dispositivo narrativo de situar todo o filme à volta dos diálogos entre Reality e os dois agentes investigadores, faz mais sentido quando se sabe que a realizadora escreveu primeiro uma peça de teatro baseada nos eventos, a off-Broadway “Is This a Room”.
“Reality” é uma chamber piece que se move lentamente dentro de espaços limitados, e que principalmente se move dentro da cabeça de Reality. O seu acesso à própria memória é um instrumento de fuga que lhe permite negociar a sua verdade dos fatos daquele fatídico dia. E negociar a própria ingenuidade em avaliar a seriedade da situação. Numa determinada cena ela pergunta a um dos agentes se irá dormir no seu apartamento aquela noite, pois tem uma gata e um cachorro para alimentar, completamente alheia do que seria o seu destino.
Numa época em que se discute o conceito de “pós-verdade”, o filme de Satter coloca uma questão crucial: é possível expôr uma verdade objetiva através de uma performance que tenta reproduzir um acontecimento com tantos pontos de vista? Pode ser difícil chegarmos a uma resposta definitiva. No entanto, já estamos a meio caminho de compreender que a natureza performativa da realidade pode ser aproveitada e utilizada para obter um entendimento mais profundo dela. Um dos filmes mais enigmáticos e inquietantes a dar as caras por Berlim.
No final da sessão do filme da Maite Alberdi dava para ver e ouvir as reações emocionadas da audiência presente. Por entre olhos vermelhos e narizes fungando no escuro da sala, ninguém saiu ileso ao impacto emocional de “The Eternal Memory”.
Augusto e Paulina são um casal apaixonado e estão juntos há 25 anos. Na cena que abre o filme, Paulina pergunta ao marido se ele sabe quem é ela. Ele não sabe. Quando ela o informa de que eles se conheceram há um quarto de século atrás, e que são na verdade um casal, ele olha para ela com espanto e incredulidade. Há oito anos, Augusto foi diagnosticado com Alzheimer e, desde então, Paulina assumiu o papel de cuidadora, registrando em vídeo todos os momentos da deterioração da sua memória.
Na sua juventude, Augusto foi um jornalista famoso e uma voz ativa na arena cultural chilena, conhecido pela sua cobertura jornalística do regime de Pinochet e os esforços do governo para apagar a memória coletiva de uma nação. Paulina, ex-atriz e Ministra da Cultura da presidente Michelle Bachelet na época, agora se vê encarregada de não deixar a memória de Augusto se desvanecer.
Então ela dá início a um diário cronológico registrando o dia-a-dia do marido desde o terrível diagnóstico até os dias de hoje. Um filme lindo e devastador que quer preservar a memória do passado como aprendizado libertário para o presente, mas que é também, e sobretudo, um filme sobre a conservação de um amor que apesar das circunstancias, resistiu ao tempo.