Conhecida pelo rigor e disciplina de trabalho, a cultura asiática, do ponto de vista ocidental e europeu, deixa-se absorver pela máquina produtiva que gira e gira num loop infinito de movimentos mecanizados. Uma imagem alegórica que bem serve este cenário é a da lavandaria recheada de programas de lavagem e de centrifugação de roupa, numa repetição ad aeternum daquilo que nunca mais parece acabar: a rotina de ter a roupa lavada. Muito disto se assemelha, por conseguinte, à dimensão laboral rotineira a que tantos e tantos de nós, orientais e ocidentais, nos entregamos, por forma a ter comida na mesa e a pagar as contas às finanças. Quem de nós é que não deu largas à imaginação num exercício meramente especulativo que postulasse que numa outra realidade ou universo paralelos, a burocracia não existe, a produtividade frenética não impera, e a falta de vita contemplativa não asfixia (?) Porventura demasiados de nós sonhamos em sermos figuras-outras, em vidas-outras, e certamente os realizadores e argumentistas (originais) Dan Kwan e Daniel Scheinert dedicaram-se, exaustivamente, em “Everything Everywhere All at Once” (Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, 2022), a fazer do cenário de uma lavandaria pública, o epicentro existencialista da família Wang.
Desta dupla de realização e argumento, os Daniels (“Swiss Army Man”, 2016), neste seu mais recente filme (e que à data conta com onze nomeações aos Óscares), resulta a combinação entre um elenco predominantemente asiático, e a teoria do multiverso. Esta teoria postula que os conceitos de tempo, espaço, matéria, leis da física, se aplicam a um conjunto hipotético de múltiplos universos possíveis, no qual se inclui aquele em que acreditamos viver.
Numa clara crítica àquilo que, entre outros aspectos, corrói a potencialidade de ser, Evelyn Wang (Michelle Yeoh) encontra-se presa num processo kafkiano com os serviços de finanças, aqui brilhantemente caricaturados na figura de Deirdre Beaubeirdre (Jamie Lee Curtis), pois pelo menos neste universo sempre falta a entrega de um papel-comprovativo. A solução para os meandros burocráticos que nos vão encurralando poderá ser ora deixarmo-nos sufocar, ora resvalar para a força criadora do uso da imaginação.
Naquele que parece ser um uso exagerado e absurdo do movimento e das condições de possibilidade de universos-outros levado à exaustão, e que é possível graças a um intenso exercício de montagem, de caracterização e de guarda-roupa, o exagero e o absurdo ganham o destaque inerente à caricatura. É que poderiam estar reunidos os ingredientes clássicos de um filme de ficção-científica que trava a luta tensa do bem contra o mal, não obstante, o modo como esses mesmos ingredientes são continuamente caricaturados no filme, atribui-lhe um estatuto diferente (li algures que se trata de uma ficção-científica indie).
De entre as diversas possibilidades-outras-de-ser que se vão constituindo em todas as personagens, ao longo de todos os múltiplos universos, consubstancia-se um belo elogio, não somente ao multiverso, mas sobretudo ao potencial múltiplo de ser. Numa dessas realidades paralelas não é esquecida a homenagem ao sublime “In The Mood for Love” (“Disponível para Amar”, 2000) do mestre Wong kar-way.
A crescente disponibilidade e acesso à informação e aos meios digitais de comunicação, que nem por isso apaziguam a angústia contemporânea, antes disfarçam o mal-estar da solidão e da descrença que vão-se intensificam, paradoxalmente, nesta nossa realidade tão difusamente em rede. Paradoxal é o facto de toda a jornada freneticamente percorrida ao longo do filme, por tantos e tantos universos paralelos, coincidir com uma nítida viagem interior, espiritual e contemplativa, de introspecção e de auto-conhecimento.
De mãos dados com a filosofia oriental, Evelyn Wang reconcilia-se consigo mesma, na sua condição de esposa e de mãe, e até mesmo com a figura burocrata (que no fundo precisava do antídoto do Amor). A lavandaria regressa, no final, para ser o palco de uma lavagem daquilo que é o acessório, para que possa emergir aquilo que é o essencial. Num filme que teria tudo para configurar-se como ficção-científica animada e de entretenimento (e escrevo do ponto de vista de uma não apreciadora de filmes do género), é a cena final na lavandaria que atribui ao filme uma dimensão existencialista, a saber, poderíamos ser tudo em todo o lado ao mesmo tempo, mas aquilo que é essencial à vida é, frequentemente, o que é simples e inexplicável.