Foi em 2022 que Rian Johnson voltou a reunir os fãs de “Knives Out” (2019) e do detetive Blanc para mais um quebra-cabeças labiríntico, envolvendo desta vez um destino paradisíaco na Grécia, jogos com estátuas de vidro, a Mona Lisa e uma paródia relativa à opulência dos multimilionários.
É em plena pandemia que um grupo de velhos amigos – Andie Brand (Janelle Monáe), Birdie Jay (Kate Hudson), Claire (Kathryn Hahn), Duke (Dave Bautista), acompanhado por Whiskey (Madelyne Cline), e Lionel (Leslie Odom Jr) – são convidados por Miles Bron (Edward Norton), também este um conhecido de longa data do grupo, para passarem um fim de semana na sua mansão na Grécia, com o objetivo de resolverem um homicídio onde Bron é a vítima. Tudo isto não passa de um jogo com um toque misterioso de Agatha Christie, nada que não tenhamos visto em “And Then There Were None”, “The Three Act Tragedy”, ou até mesmo em “Death On The Nile”. A peculiaridade da situação não está no teor do jogo em si, que não aparenta qualquer maldade, mas está em torno dos convidados: também o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig), que não tem qualquer ligação com os presentes, recebeu a proposta para participar. Podemos ver já aqui um paralelismo com “Knives Out”, nomeadamente no que diz respeito ao mistério em torno da razão pela qual a sua presença foi requerida.
A cena do cais é repleta de pistas, sobretudo a nível do guarda-roupa, que já nos dizem muito sobre a personalidade de cada um. A maioria dos figurinos tem um carácter visualmente bonito, provavelmente para completar a suavidade da paisagem. Não é de estranhar que Craig, um Poirot em ascensão, um homem sofisticado com uma aparência clássica, complemente a máscara (relembrando que a ação ocorre durante a pandemia) com a elegância do outfit. Percebemos logo que este acredita e respeita a ciência por a usar corretamente. Por outro lado, Birdie é a típica pessoa que durante a quarentena fica em casa a organizar festas clandestinas de arromba, sem proteção – claro, logo a sua máscara, quase invisível quando chega ao local de partida, não passa de um mero acessório. Podemos ver uma série de perfurações, bastante largas por sinal, o que nos leva a entender que é mais uma joia do que um instrumento de defesa. Neste caso, como em todos os outros, a estilista Jenny Eagan escolheu intencional e minuciosamente o vestuário da personagem para nos demonstrar que esta é uma mulher pouco empática, que vive num mundo onde ela é o centro. Numa batalha de figurinos, o vestido arco-íris que utiliza durante o jantar é o grande vencedor. Tem tanto de inesquecível como a volta que Hudson faz para o mostrar, captando a atenção dos restantes com glamour e extravagância. Como nada é por acaso, a peça vai desempenhar um papel crucial no desenrolar da cena, utilizando as cores e o movimento como autênticos manipuladores da visão.
No entanto, o caso de Andie vais mais longe, algo que só vai ser compreensível à medida que a narrativa vai avançando. Os seus visuais vão ser um ponto chave. Como era de esperar, o mistério e a alta-costura caracterizam o estilo individual desta personagem. Na cena do cais, a sua presença ousada capta a atenção de imediato, não só pelas reações do grupo, mas também pelo vestido que está a usar. Há um impacto visual determinante que é conjugado por vários fatores, incluindo a própria banda sonora. A situação quase que nos transporta para outro momento icónico, para um “momento da vingança”, ou neste caso em particular, para um “vestido da vingança.”
Contrariamente a “Knives Out”, que se foca no impacto que o dinheiro tem nas gerações – passadas e presentes, “Glass Onion” vai dar mais protagonismo ao futuro. Mais uma vez, através de uma perspetiva diferente, o poder vindo da riqueza é o assunto que está em jogo. Há toda uma crítica ao capitalismo exacerbado, disfarçada pelo humor presente nos diálogos e no cenário. O próprio Miles é a prova disso. “O imbecil” – simbólica e literalmente.
Antes de mais, logo que este anuncia as regras do jogo – que supostamente era tão difícil que devia durar o fim de semana inteiro – Blanc afunda-lhe os planos num espaço de segundos. Para pessoas como Miles, riqueza é sinónimo de controlo de pessoas e bens, e como tal, como pode comprar tudo, pensa que também pode comprar inteligência, ou até mesmo perspicácia, portanto considera-se um verdadeiro intelectual. A decoração da sua casa está cheia de detalhes que o provam. É de notar a pintura de Mark Rothko, “Number 207 (Red Over Dark Blue on Dark Gray)”, na parede. Tal como o nome indica, o vermelho deve sobrepor-se ao azul. Surpresa das surpresas: Miles tem-no exatamente ao contrário – o azul no topo e o vermelho em baixo.
Quase todos os membros são alvo de crítica, sobretudo pelo facto de beneficiarem de mentiras sempre que lhes convém. Numa entrevista, Rian confessa que há a todo um interesse em explorar o lugar que pessoas como o próprio magnata e o grupo têm na sociedade, assim como a nossa culpa em alimentar as ligações que têm com a sociedade em geral.
Um pouco mais à frente é possível ver uma notícia com o seguinte título: “The Billion Dollar Napkin: How Miles Bron Built An Empire”, seguido de uma foto do mesmo a segurar no guardanapo que o tornou milionário. Aparentemente não é nada de mais. Contudo, a forma como a fotografia foi tirada remete para uma recriação de uma das fotos da bilionária Elizabeth Holmes, fundadora da companhia Theranos, que foi condenada por fraude. O caso é bastante conhecido, tornou-se viral. Provavelmente a referência também foi usada para que a mensagem fosse mais acessível ao público. Não se pode negar que Miles está a usar roupas semelhantes às de Elizabeth. A posição das mãos enquanto segura a razão do seu sucesso é praticamente a mesma.
No que diz respeito à caracterização de Bron quando Andie o apresenta ao grupo, esta é extremamente familiar: é legítimo evocar Tom Cruise no filme “Magnolia” (1999). Poderá este figurino ser mais uma pista relacionada com a personalidade de Miles e um presságio para o que vai acontecer? Sim.
Como o título indica, a presença dos Beatles vem reforçar toda esta teoria. Lançada em 1968, a música “Glass Onion” tem um verso que menciona um imbecil no topo de uma colina – “I told you about the fool on the hill/I told you, man, he’s living there still.” Um objeto que Miles estima profundamente na sua casa é o quadro da Mona Lisa, o mesmo que deveria estrar no Louvre. Por ser tão valioso, tem um sistema de proteção altamente sofisticado, existindo um botão de substituição que faz parte desse mesmo sistema. Esse botão não é nada mais nada menos do que uma pequena estátua de um bobo – the fool/ o imbecil – no topo de uma colina. Existem mais referências ao longo do filme. Quando o grupo chega ao local, a canção que o anfitrião está a tocar parece ser Blackbird. Os versos “Blackbird singing in the dead of night/Take these broken wings and learn how to fly” podem estar na base da relação que Andie tem com os restantes, mas acima de tudo, podem explicar – metaforicamente – o grande sucesso de Bron. Este chega até a dizer que a guitarra é a mesma que Paul usou quando escreveu a canção. Não deixa dúvidas que este “Paul” em questão é Paul McCartney.
Seria quase criminoso ignorar um detalhe que não deixa de ser valioso, uma vez que reúne algumas personagens de renome no mundo do crime. É possível ver nas cenas iniciais que Blanc está a jogar Among Us com um grupo de pessoas que são tudo menos aleatórias. Podemos reconhecer instantaneamente Angela Lansbury – a eterna Jessica Fletcher de Crime, Disse Ela – que surge no ecrã como Angie- e Kareem Abdul-Jabbar (Kareem) – ex-basquetebolista da NBA e autor dos livros de Mycroft Holmes (o irmão mais velho de Sherlock Holmes).
Por fim, é possível estabelecer uma relação entre o título da narrativa, a explicação da metáfora que foi o seu grande pilar e o final. Quando pensamos na metáfora da cebola, pensamos em algo muito complexo, cujas várias camadas têm de ser desvendadas para chegar ao núcleo. A questão é mesmo essa. A casa de Miles – a Glass Onion – é transparente. Há assassinatos por desvendar. Assim que as luzes apagam, a luminosidade no plano é estrategicamente pensada ao pormenor, aumentando a teatralidade da cena ao mesmo tempo que expõe as expressões/movimentos dos envolvidos. O enredo cria muitas expectativas e joga com diferentes linhas temporais, permitindo que tenhamos as explicações necessárias no momento certo. Ao jogar com esses espaços de tempo, desvendam-se simultaneamente pequenos “plot twists” que vão personificar as tais camadas e que podem acabar por ser um pouco confusos. Por isso, devido a essa expectativa toda, uma parte do desfecho pode ser previsível. No entanto, o próprio Miles alertou-nos para esse risco: “Escondi pistas por toda a ilha. Algumas podem ser úteis, outras podem enganar. Cabe-vos a vocês determinar.”
Quem ficou desiludido com a revelação caiu na armadilha de Rian. Pelas palavras de Blanc, “Gosto da cebola de vidro como metáfora. Um objeto que parece denso por ter tantas camadas, mas, na realidade, o centro está à vista.”, percebemos que o erro foi procurar complexidade numa coisa simples e que estava aos olhos de toda a gente. O mistério parece todo muito complexo quando na realidade é mais do que óbvio. A situação que se seguiu também tem um significado evidente. Mais uma vez, através dessa última cena, percebemos que a grande dimensão do final não estava em saber quem matou quem.
Este não é o primeiro filme, e provavelmente não será o último, onde as letras dos Beatles são utilizadas como referência. “I am Sam” (2001), por exemplo, também utiliza músicas como “Golden Slumbers” para dar uma emoção arrepiante à cena. No caso de “Glass Onion”, a banda sonora é essencial para dar uma boa solidez ao mistério, servindo – juntamente com os figurinos – como um fio condutor para a sucessão dos acontecimentos. Esta está carregada de um dramatismo épico, que mais uma vez só prova que nada nos filmes de Rian é por acaso.