O Cinema Sétima Arte conversou com a realizadora luso-francesa Justine Lemahieu a propósito do documentário “As Fado Bicha”, que entra em cartaz nesta quinta-feira (17), após ter sido exibido no IndieLisboa e no Queer Porto. Lemahieu vive em Lisboa desde 2005, lançou “Sousa Martins” (a sua primeira longa-metragem) em 2019, e dedica-se a retratar questões sócio-económicas, lutas e formas quotidianas de resistência em seus filmes.
“As Fado Bicha” acompanha a jornada artística e ativista de Lila Tiago e João Caçador, dupla que criou a pioneira banda Fado Bicha em 2017. Durante quatro anos, a realizadora se dedicou a seguir com a sua câmara o percurso da dupla de artistas, que através das suas canções subverte e reinterpreta o fado tradicional.
Abaixo, leia o depoimento de Justine Lemahieu na íntegra:
INTUIÇÃO
Conheci a banda no início de 2019. Tinha ouvido falar delas através de amigos e como estava previsto um concerto numa associação do meu bairro, fui. Nunca tinha visto este pequeno espaço tão cheio de gente! Quando descobri o trabalho musical e performativo da Lila e do João, fiquei comovida, seduzida pela presença e o talento das duas artistas, pelos sons da guitarra eléctrica, pela sua paixão pelo fado e pela sua capacidade de interagir com o público com subtileza, misturando histórias do quotidiano com referências literárias e utilizando um poderoso sentido de humor. Senti nelas algo de verdadeiro, uma necessidade, uma real alegria e generosidade na partilha de um repertório de canções que as pessoas na plateia reconheciam e cantavam ou (re)descobriam. Havia uma grande liberdade nos movimentos, na forma como ocupavam o palco, nos gestos e palavras, um prazer na expressão corporal e linguística, deixando no entanto espaço para acolher as hesitações e as interrogações. Senti que a força do espetáculo estava diretamente ligada a uma capacidade de libertação de que todas e todos nós precisamos. Desafiavam com imensa coragem as normas de género, hierarquias e mecanismos de poder que têm de ser desmantelados se quisermos avançar coletivamente para um mundo menos injusto e menos violento. Na altura, claro, não formulei as coisas dessa forma na minha cabeça. Foi mais uma intuição. Simplesmente pensei: “Que grande liberdade! Que força de subversão e que elegância é esta? Quero filmar essas artistas”.
Depois do concerto, decidi seguir essa intuição e entrar em contacto através das redes sociais, e recebi rapidamente uma resposta. Combinámos num café. Apesar de eu surgir do nada com a minha vontade de fazer um filme — sozinha e sem quaisquer meios de produção —, apesar de ser uma pessoa cis, sem conhecimentos no domínio dos estudos de género e das lutas da comunidade LGBTQI+, acolheram-me com interesse e abertura. Aceitaram que eu filmasse e, ao longo de um processo que acabou por durar mais de quatro anos, mostraram uma enorme tolerância e paciência. Deixaram-me à vontade para filmar, acolheram as minhas dúvidas e questões, procuraram comigo o caminho do filme e ajudaram-me a não desistir.
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DESAFIOS (E UMA PANDEMIA)
O processo foi uma experiência muito enriquecedora e transformadora, mas também dura. Um dos principais obstáculos foi a ausência de financiamento. É difícil encontrar recursos para ter uma equipa, garantir as condições técnicas necessárias e ter tempo para as rodagens e a montagem. Os apoios à cultura são escassos e difíceis de obter e, sem bolsas ou financiamentos, acabamos presas num ciclo desgastante: acumular vários trabalhos para poder viver, enquanto tentamos criar. Na altura (como ainda acontece hoje), acumulava várias atividades — professora, tradutora, montadora e fixer para a televisão — todas à recibos verdes. Isso tornava difícil encontrar a estabilidade e o tempo necessários para escrever dossiês e candidaturas, passos fundamentais para aceder a uma estrutura financeira mínima. Não o digo em tom de vitimização. Com determinação, conseguimos avançar. Mas é importante descrevê-lo, porque esta é uma realidade partilhada por muitas pessoas.

Portanto, comecei sozinha, com o meu material de gravação, filmando como podia, aos fins de semana, bastante insegura. Tive a sorte de contar com o apoio de amigos profissionais ao longo de todo o processo, nomeadamente os engenheiros de som Miguel Cabral e Olivier Blanc, o produtor Bruno Moraes Cabral, que abraçou o projeto, ajudou-me a encontrar melhores meios técnicos e acompanhou toda a segunda fase das gravações até a saída do filme em sala, o operador de câmara Pedro Ivo Carvalho, e a grafista Catherine Boutaud. Todas essas pessoas, trabalhadoras da cultura, disponibilizaram as suas competências e deram do seu tempo para o filme existir, sem saber se iriam receber. Só no final, com o apoio para a finalização do ICA, conseguimos pagar a equipa do filme.
A pandemia foi outro obstáculo, provocando a paragem total dos concertos das Fado Bicha, a impossibilidade de nos encontrar para filmar e criando ainda mais insegurança laboral nas nossas vidas. Mas foi também, do meu lado, uma pausa que originou uma mudança construtiva. Reorganizei as minhas prioridades, livrei-me do meu trabalho de professora a “falsos” recibos verdes para me concentrar no que realmente queria fazer. Para não desistir no meio da pandemia, realizei o desejo de voltar a estudar e descobrir a antropologia, uma disciplina cujo apelo sentia há vários anos. Inscrevi-me no mestrado de Antropologia e Culturas Visuais na FCSH. Precisava aprofundar os temas e as questões complexas com as quais as Fado Bicha me confrontavam. Havia, da minha parte, uma falta de conhecimento tanto no domínio dos estudos de género como na história do fado. Então, estudei e dediquei-me às leituras e à escrita. A tese de mestrado teve como foco a descrição das performances das Fado Bicha, as suas narrativas de vida e a descrição do processo do filme, trabalho de observação que pus em diálogo com uma reflexão sobre a história do fado na perspectiva da questão de género.
Depois da pandemia, em fevereiro de 2023, poucos dias após defender a tese, perdi a minha mãe. Quando voltei de França, alguns meses depois, retomamos a rodagem e montei o filme até finalizá-lo, um trabalho que, até hoje, acompanhou o processo pessoal e doloroso do luto. Esses anos foram, portanto, marcados por obstáculos e por períodos de sofrimento.
Tendo em conta essas dificuldades e as circunstâncias familiares, acho importante dizer o seguinte: com a distância, penso que a maior dificuldade para fazer o documentário foi ainda outra questão, de ordem mais interior, foi conseguir realmente encontrar-me com as pessoas, sem projetar nelas o que eu queria que fossem. Ou seja, ultrapassar os meus próprios esquemas de pensamento, padrões sobre o que é certo ou errado, ou o que merece ou não atenção. As Fado Bicha permitiram-me revisar o meu próprio pensamento, mas isso não foi nada óbvio; foi angustiante. Desistir das minhas expectativas e projeções mentais, sobretudo das categorias binárias de oposição dos sexos e das categorias gramaticais ligada a essa separação, tentar ver mesmo as pessoas, de forma mais esclarecida, ouvir melhor o que era dito, libertar-me de certos limites arbitrários que condicionavam o meu olhar, foi o maior desafio.
Por exemplo, progressivamente, ao passar horas a filmar e visionando mil vezes o material filmado, tomei consciência de certos preconceitos misóginos enraizados em mim pela minha educação e pela minha história pessoal. Mas isso demorou imenso tempo a surgir a minha consciência. Também, através do processo do filme e das leituras, interroguei-me pela primeira vez sobre o caráter performativo da linguagem e sobre as categorias binárias de pensamento que me limitavam e dificultavam a minha compreensão das pessoas. Foi um caminho longo e nada evidente, montei o filme no sentido de partilhar essa evolução, como uma mudança alegre.

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CENA MUSICAL QUEER PORTUGUESA
Penso que essa questão é mais para as Fado Bicha responderem. Não consigo avaliar com precisão a evolução da cena musical queer em Portugal, até porque a minha experiência como espectadora é reduzida à Lisboa. O que posso dizer é que Lila e João chamam a atenção para o facto de que as artistas LGBTQIA+ existem em Portugal, mas não encontram espaço suficiente na programação para chegar à um público mais vasto. Ainda há pouca abertura por parte das instituições e autarquias para dar visibilidade a artistas queer. As escolhas de programação dos eventos que comemoram o 25 de Abril, a nível nacional, são um bom exemplo dessa ausência de representatividade, mecanismos de silenciamento ou falta de coragem por parte dos poderes políticos.
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INSPIRAÇÕES
Umas cineastas que marcaram-me são por exemplo Marguerite Duras, Maya Deren, Claire Denis. Dentro da produção portuguesa mais recente, o último filme realizado por uma mulher que vi e que me emocionou, pela sua inventividade, atenção às pessoas, a relação com a infância e as forças mágicas; a sua exigência em termos de guião, direção de atores e realização, é o filme “Alma Viva”, da realizadora Cristèle Alves Meira.
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PRÓXIMOS PROJECTOS
Ainda não sei. Tenho quatro ideias em mente que gostava de desenvolver — três documentários e uma ficção.