“Kenai e Koda”: Resistência, Genocídio e Representatividade

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Um aspecto importante no filme de Aaron Blaise e Robert Walker, que poderia ser mais profundamente explorado pelo argumento de Tab Murphy, Steve Bencich, Lorne Cameron, Ron J. Friedman e David Hoselton, é a temática da visibilidade indígena, a qual, felizmente, tem sido objeto de debate frequente na última década.

Indiretamente, ao retratar a cultura xamânica e uma sociedade indígena do final da Era Glacial, assemelhada ao Povo Tlingit, o filme convida-nos a olhar para os povos originários das Américas com respeito e reflexão, instigando-nos a questionar nossos próprios estereótipos e preconceitos.

Desconstruindo os estereótipos e preconceitos ainda presentes em relação aos povos indígenas, podemos promover atitudes mais humanitárias em relação a eles, tanto no presente como no futuro.

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Evitar a repetição dos erros do passado é essencial. Um exemplo disso é o genocídio que quase extinguiu os povos originários norte-americanos. De acordo com um levantamento feito pela historiadora Maria José de Souza Gomes, estima-se que, em 1492, havia mais de 25 milhões de nativos na América do Norte, falando cerca de 2 mil idiomas. No entanto, no fim das chamadas “guerras indígenas”, esse número havia caído para apenas 2 milhões, menos de 10% do total.

Nos Estados Unidos, de acordo com o censo mais recente do país, as terras indígenas cobrem uma extensão total de 22,7 milhões de hectares, o que representa aproximadamente 2,3% da área total da nação. Essas terras estão subdivididas em 326 reservas, sob administração de governos indígenas. A população nativa identificada nos Estados Unidos constitui 1,3% da totalidade, alcançando 5,3 milhões de pessoas. É relevante observar que 87% desses indivíduos residem fora das áreas oficialmente demarcadas como reservas.

Para efeito de comparação, no Brasil, as terras demarcadas totalizam 117 milhões de hectares, equivalendo a cerca de 13,8% do território nacional. Essas terras são reconhecidas e protegidas pela Constituição Federal. Estima-se uma população indígena de aproximadamente 1,7 milhão de pessoas, conforme dados do IGBE. (Acompanhe aqui informações gerais sobre Terras Indígenas no Brasil compiladas pela ONG Terras Indígenas).

Por sua vez, como reportou em abril a Folha de S.Paulo, o governo australiano criou 87 milhões de hectares de reservas protegidas nas últimas décadas, representando 13% do território australiano. O país conta atualmente com uma população de 984 mil aborígenes, o que corresponde a 3,8% da população total. Similarmente ao Brasil, a Austrália mantém uma considerável população nativa.

Voltando ao caso norte-americano, como é sabido, o estabelecimento dos europeus em solo americano, tal como em diversos lugares ao redor do mundo, implicou na violação das terras e na degradação do meio ambiente. Até hoje, as comunidades indígenas locais aguardam um pedido de desculpas por parte do governo dos Estados Unidos.

A historiadora Fernanda Paixão Pissurno, no artigo “Genocídio indígena nos EUA” para o InfoEscola, sublinha a seguinte definição de genocídio: “O genocídio é a deliberada destruição em massa de um grupo étnico, religioso, racial ou nacional.”

A partir dessa definição, ela argumenta que o genocídio indígena no continente americano foi, de facto, um genocídio. Ela cita como exemplos o massacre de comunidades inteiras por meio da ação de exércitos ou por meio de doenças para as quais as populações nativas não tinham resistência.

A historiadora também destaca que o genocídio indígena foi um processo não sistemático e, em grande medida, não planeado. No entanto, isso não o torna menos grave. Ao contrário, torna-o ainda mais terrível, pois demonstra que o genocídio era uma consequência natural da colonização europeia.

Ainda segundo a historiadora, o genocídio indígena não se limitou às mortes por meio militar ou viral. Com o passar do tempo, os descendentes de europeus desenvolviam técnicas mais sofisticadas para forçar o deslocamento dos povos nativos para longe das terras desejadas, tais como a destruição proposital do habitat natural e a matança de animais essenciais para a subsistência dos povos indígenas, como o bisonte.

Incêndios e conflitos entre diferentes tribos também eram provocados. Além disso, os europeus incentivavam o uso de álcool, que os indígenas muitas vezes não conseguem decompor no seu organismo, e a esterilização forçada.

Por outro lado, Souza Gomes resgata que o genocídio dos povos originários foi um processo deliberado e sistemático, impulsionado pelo governo dos Estados Unidos. O governo se recusava a aceitar qualquer conceito divergente de seus paradigmas culturais e conhecimentos, e as políticas expansionistas contaram com o apoio explícito de setores que vislumbravam a possibilidade de obter lucros por meio do extermínio generalizado dos indígenas. Isso resultou na substituição das terras indígenas por áreas integradas ao sistema de comércio, o que gerou dividendos para banqueiros, industriais ferroviários, fabricantes de implementos agrícolas e outros capitalistas.

Detalhando melhor, Souza Gomes comenta que o “Indian Removal Act”, aprovado em 1830, forçou os nativos americanos a se deslocarem para os “Territórios Indígenas” ou “reservas”, que eram zonas reduzidas específicas destinadas às comunidades indígenas. Essa política tinha como objetivo erradicar as práticas e estruturas de pensamento indígenas que eram diferentes da cultura predominante. Para obter a cidadania americana, os indígenas eram obrigados a renunciar à sua cultura e adotar a cultura dominante.

A preponderância da cultura “superior” legitimou apenas as práticas da mesma. Segundo ela, é importante notar que o próprio nome da lei é depreciativo, pois sugere que os indígenas eram objetos a serem removidos, não seres humanos.

Souza Gomes contextualiza a remoção dos indígenas da seguinte forma:

 

“A remoção dos indígenas era um processo muito penoso. As distâncias a serem percorridas eram enormes e as marchas forçadas eram realizadas a pé. Crianças, idosos e enfermos eram obrigados a participar, chegando a atravessar quatro estados até chegarem aos chamados “Territórios Indígenas” (atual Estado de Oklahoma). Um grande número de indígenas morria pelo caminho devido às más condições da viagem. A “Trilha ou Caminho das Lágrimas” foi o nome dado pelos nativos às viagens de recolocação impostas pelo governo dos Estados Unidos”.

 

 

Assim como a comunidade retratada na animação, os Tlingit (às vezes também conhecidos como Łingít) são povos indígenas da costa noroeste do Pacífico da América do Norte que compartilham uma herança cultural comum com outros povos indígenas que falam línguas na-dene, como os Eyak, Ahtna, Dena’ina, Hupa, Apache e Navajo. Tlingit significa “povo das marés”. De acordo com o Censo de 2016, 2.110 pessoas foram identificadas como tendo ascendência Tlingit.

Eles são uma nação matrilinear, o que significa que a linhagem é traçada pela mãe. A sociedade Tlingit é dividida em duas metades, conhecidas como Raven e Eagle. Cada metade consiste em muitos clãs, que são grupos de famílias que se originaram de um ancestral comum. Os clãs Tlingit são nomeados de acordo com animais, plantas ou espíritos.

As relações sociais Tlingit baseiam-se em obrigações recíprocas entre membros de clãs em metades opostas. A mais importante dessas obrigações é a realização de potlatches, festas de morte e memoriais que são marcadas por rica oratória, canto e dança, bem como exibição visual simbólica. Os Tlingit também se casavam com outros povos indígenas da região.

Até depois da Segunda Guerra Mundial, não havia chefes de bando Tlingit. Os clãs tinham autoridade limitada, e a liderança era exercida por um conselho de chefes de clã. Após a guerra, o governo canadense criou chefes de bando e conselhos eleitos. Os Tlingit em Teslin têm seu próprio sistema judicial.

Os Tlingit tornaram-se cada vez mais expostos à sociedade e cultura europeias no início do século XX, com a corrida do ouro, o desenvolvimento da mineração e a construção da Estrada do Alasca. Apesar disso, os Tlingit mantiveram sua cultura e identidade. Eles recuperaram as artes tradicionais e estabeleceram negócios comerciais, como a fabricação de canoas e raquetes de neve. Os Tlingit também possuem uma rica literatura oral.

A subsistência dos Tlingit estava centrada na pesca e caça, sendo que sua cultura era profundamente influenciada pela interação com a natureza. Para eles, os animais eram considerados como membros da família, e acreditavam que os espíritos naturais desempenhavam um papel crucial no bem-estar da comunidade.

O filme explora de forma bela essa complexa relação espiritual entre humanos e animais, um tema comum a muitas culturas. Essa relação é central para as lendas dos povos nativos norte-americanos, que veem os animais como seus parentes e os tratam com respeito. O xamanismo, um sistema de crenças e práticas que envolve a interação com o mundo espiritual, media essa relação. No xamanismo, os animais são frequentemente vistos como guias ou mensageiros espirituais.

Como comentei, essa visão espiritual também acontece de outras formas ao redor do mundo. Por exemplo, os aborígenes australianos acreditam que os animais são espíritos ancestrais que podem assumir forma humana. Muitas tribos africanas acreditam que os animais são portadores de sabedoria e poder espiritual. Algumas culturas asiáticas, como o hinduísmo e o budismo, veem os animais como manifestações de divindades ou forças espirituais.

Por sua vez, algumas tribos sul-americanas acreditam que os animais são guardiões da natureza e que devem ser protegidos. No Brasil, também é possível encontrar exemplos de relação espiritual entre humanos e animais. Muitas tribos indígenas brasileiras acreditam que os animais são seus ancestrais ou protetores.

Além disso, algumas religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, também veem os animais como manifestações de divindades.

 

Referências bibliográficas:

GOMES, M. J. de S. . O Genocídio dos Índios Nativos Norte Americanos. E- Revista de Estudos Interculturais , [S. l.], n. 1, 2021. DOI: 10.34630/erei.vi1.3867. Disponível em: https://parc.ipp.pt/index.php/e-rei/article/view/3867. Acesso em: 3 nov. 2023.

McClellan, C. Tlingit. In The Canadian Encyclopedia. Disponível em: <https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/inland-tlingit>. Acesso em: 3 de novembro de 2023.

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