Licorice Pizza – Os Corpos em Fluxo

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Licorice Pizza (2021)

A fluidez que perpassa o cinema de Paul Thomas Anderson é a marca de um olhar não afastado, mas antes incisivo e colocado sobre as coisas da memória e do mundo. Os travellings que acompanham o primeiro encontro entre Gary Valentine (Cooper Hoffman) e Alana Kane (Alana Haim) são movimentos deslizantes e ondulantes que atravessam, no fluxo do seu próprio tempo, os espaços de uma memorização registada de outros tempos que são manifestamente necessários enquanto imagens a reter e a retrazer às imagens do agora.

A câmara de Paul Thomas Anderson flui. Ela julga o espaço pela sua lisura e através do seu deslize abrangente: a fala de Alana não é só o assento primordial do foco, é também o ponto de chamada para tudo o que está para lá dela, o bater e rebater dos reflexos dos sol, o fundo, ligeiramente sobreexposto e quente, é o recorte de um mundo ido, mas recrudescido de uma imagem que o incandesce pela força da luminosidade prateada e crepitante, é um grão de um tempo que urge fazer refluir, fluir e deixar em fluxo.

A câmara de Paul Thomas Anderson compara. Ela julga tamanhos e corpos, movimentações e contra-movimentações, afirma o burburinho e os instantâneos dos encontros cadenciados e atos praticados do devir que é o estar em existência. O atravessar do ginásio do liceu – no dia de fotografar os alunos – é um travelling lateral, em direção oblíqua, que não só se aglutina ao conversar entre Gary e Alana, como também se regista como um emoldurar do momento e da prática – maquinal, se diga – de se fazer uma imagem dos tempos específicos da adolescência e da passagem para a vida adulta. A fotografia para o liceu, a filmagem da fotografia a ser tirada é a recuperação – por Paul Thomas Anderson – do tempo tido e o avanço, por fluxo, do tempo que ainda há-de vir – o de Gary Valentine – e do reabrir, para remetimento, do tempo em suspensão – o de Alana Kane – um tríplice recorte sobre um outro tempo, o histórico-factual.

A câmara de Paul Thomas Anderson recorda. O seu cinema olha sempre para trás, o seu filmar é um de recensear as memórias e os gostos de uma temporalidade que, embora ida, é sempre de reintegrar, retecer – esse seu fluir através dos tempos – e reinstaurar no tempo a que é chamada. Filmar é recordar, o filme é uma re- memória, o seu registo um novo fluxo a continuar. Se Licorice Pizza é um filme de período, é-o enquanto de um tempo que é mais contemporâneo do que a definição do género prevê. Os seus anos 70 vivem com a energia de todas as características afirmativas da sua câmara: fluem, comparam e (auto)recordam. São bem o reflexo do sentido de iniciativa e de inscrição no mundo que caracterizam Gary Valentine. A energia como equivalência da precocidade e da fúria de querer viver e fazer. O inusitado da sua postura – faz mais por si e pelo avanço na vida (o fluxo) do que os que lhe são mais velhos – roça a incredulidade e a impossibilidade, mas é dessa sua vontade de se fazer fluir – em conexão com a câmara que sempre o acompanha – e de se moldar enquanto o incansável e imparável business man de 15 anos – 16 anos completados durante o filme – sempre capaz de reconhecer o valor do novo e dos tempos novos que surgem com o fluxo de oportunidades de um futuro mais rentável. A diferença de idades que o separa de Alana – 10 anos no início, 9 no fim – ainda que implicando, uma vez mais, um mesmo fluxo e uma mesma necessidade de correr e alcançar, de ser indiferente ao que foge, é uma que não invalida, pois está acima de tudo, é o fluxo inquebrantável da vontade e sentido do amar. A outra energia, a de Alana, ainda que toldada pela descrença inicial – acredita que ainda terá o mesmo emprego insatisfatório quando tiver 30 anos – é toda ela de uma explosiva vida, o seu corpo é um que corre muito (começando por caminhar e depois acelerar), invectiva e grita, diminui e afasta, mas não deixa de energicamente amar. Os fluxos de que aqui se fala são os do movimento, mas não há movimento maior do que o do amor, aquele que impele e faz sair e correr. E aí, mais a câmara de Paul Thomas Anderson se faz una com os seus dois personagens de fluxo. Ela corre com eles, toma-lhes o esforço e a aflição, e cada um dos seus lados, ou fora do eixo ou no seu seguimento, acelera e ofusca o fundo, revela-lhes os traços quando em ralenti, mas sobretudo se faz enquanto energia dada e energia recebida. Mais fluxos: a água em constante movimentação no interior dos colchões, as curvas insanas, em gravidade manobrada e física perigosa de uma colina feita de sinuosidades que só acabam na planura que faz parar o camião. Ao fundo, os tempos: os da crise de fornecimento de petróleo, a mesma que acaba com o negócio dos colchões de água. É a música de David Bowie que lhe faz uma elegia contraditória, uma “Life on Mars” feita de ritmo e cadência. Gary corre paralelamente aos carros parados, o seu irmão Greg Valentine (Milo Herschlag) igualmente desliza, montado na sua bicicleta, enquanto a câmara os segue, em slow motion, o rock que fala de espaços e planetas outros, são fluxos enquanto outros estão desprovidos dos seus.

A câmara de Paul Thomas Anderson permanece. Não deixa os seus protagonistas. A história é uma de passagem de idade, de crescimento, de procura de um outro lugar, do sair de onde se está, de querer ir mais além. Ao amor se volta, à ligação se regressa, à conexão de vontades que se procuraram digladiar. Os últimos fluxos, os últimos travellings, são os de quem ama: replicam-se a momentos diferentes, as direções foram as mesmas, o fluir foi o mesmo. Da esquerda para a direita corre Gary, como sempre havia fluído antes. Da direita para a esquerda corre Alana, como sempre havia fluído antes. No fim, chocam (abraçam-se?) e caem. Um happy ending à Paul Thomas Anderson. A câmara nunca foi, sempre ficou, foi sempre fundamental, o filme cabe no seu próprio fluxo: o leve slow motion de um travelling atrás, o início de um mover de lábios, o corte para negro, o declarar de um amor.

© 2022 Luís Miguel Martins Miranda

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