Não são precisos gigantes para se colocar uma boa ideia em prática e “O Colecionador de Almas” (“Longlegs”) é a prova de que é possível fazer-se bom cinema na cave. Esta obra teve um orçamento baixo, menos de dez milhões de dólares, valor que foi rapidamente reavido com o filme a alcançar o dobro do que foi investido logo no fim de semana de estreia. A ser claramente visível a falta de recursos, como a construção dos cenários, a escassez de elementos que os compõem e os efeitos especiais demonstrados, tudo isto acabou de certa forma por ajudar, fazendo com que não houvesse sequer a tentação de preencher a tela com ingredientes que provavelmente iriam fazer com que a obra se desviasse do bom caminho. O filme é fora da caixa, caótico, intrigante e nada rebuscado. Não se presente o medo do risco, tanto nos planos, como no som ou até mesmo na fantasia. Nem sempre com sucesso, mas nunca revelando-se desastroso, focado no objetivo, com o destino bem traçado.
“O Colecionador de Almas” está dividido em três partes, com um subtítulo a ser apresentado em cada uma delas. Aqui surge o primeiro equívoco. Se a ideia era catalogar as mesmas, não era preciso. Se era dividir os atos, era completamente escusado. Não se percebe muito bem o intuito e acaba por não acrescentar nada. À exceção da montagem, que foi manifestamente o pior do filme, a fazer-se notar, não conseguindo passar despercebida, que no fundo é o que se quer que aconteça, o filme consegue através das partes técnicas surpreender pela positiva, trazendo algo novo, revelador do que é ter boas ideias. A banda sonora tem momentos sublimes. Apesar de não criar tensão ao longo de todo o filme, muito devido à forma como o mesmo está montado, nem de provocar muitos jump scares, apesar de que quando acontecem serem eficazes, o que não é propriamente mau, tem momentos de magia.
Embora tenha já atingido a casa das centenas no que toca a participações em longas-metragens, Nicolas Cage tem apenas uma mão cheia de interpretações bem conseguidas. Tendo os seus desempenhos mais consistentes em “Leaving Las Vegas”, quando ganhou o seu único Óscar, “Adaptation”, em que recebeu a sua segunda nomeação para o mesmo prémio, e “Lord of War”, o ator norte-americano volta a ter aqui uma interpretação extremamente bem conseguida na sua já longa carreira. Praticamente irreconhecível, o que é um ponto positivo tendo em conta a expressão facial e corporal do ator, a personagem e, por conseguinte, o desempenho de Cage, são enaltecidos pela realização de Oz Perkins. Escondido durante todo o filme, o “Mal” é revelado no momento certo e na dose adequada para que se conseguisse evidenciar. Aí o ator é intenso, dando um boost ao filme, ajudando-o a continuar a subir na escala da qualidade, registo esse, o da qualidade do filme, que se manteve ao longo de toda a sua duração.
O seu oponente apresentou-se igualmente competente. Depois de se ter feito notar em “It Follows”, Maika Monroe volta a ter aqui uma performance coesa, conseguindo mesmo o seu melhor desempenho na carreira. Consistente, sem nunca sair do registo, fiel à personagem, Maika é aquilo que o filme pede. Misteriosa, sensível, mas ao mesmo tempo corajosa, sem medo do perigo, Lee Harker guia o público na procura pela resposta do enigma, absorvendo mesmo quem vê sem que estes (nós) se apercebam. Não obstante, Alicia Witt que surge mais tarde, tem também esta uma prestação muito lúcida, coerente com os seus pares.
“The man from downstairs”. O paralelismo que é conhecido já perto do fim filme entre a personagem de Cage e o Diabo é muito bem conseguido, sugerido previamente (posteriormente percebido) e demonstrado mais tarde através de uma das melhores sequências do filme, vem evidenciar e clarificar a obra do demónio, do homem que vive lá embaixo, que controla os que se deixam controlar e que traça o destino que bem entende para os mais vulneráveis.
O culminar do filme entende-se, ainda assim poderia ser conivente com todo o resto e ser mais arrojado. É disfarçado pela banda sonora e pelo ambience e tensão que se instala, caso contrário e poderíamos estar perante um final dececionante. Já depois do filme em si ter terminado, somos brindados com um pequeno traço da criatividade que o caracteriza, ao invés de subir, como em quase todos os outros, a ficha técnica desce. Não é inédito, mas no caso é ainda o filme a continuar, como que se se estivesse a descer ao inferno, a sucumbir ao poder do diabo. O cinema vive de filmes como este e é também com filmes como este que o cinema se reinventa e rejuvenesce.
