Alguém que conheça Luis Buñuel, mas nunca tenha experienciado um filme deste realizador, ao ver Nazarin, como introdução à filmografia do cineasta espanhol, sentir-se-ia aldrabado. Durante uma carreira com quase 50 anos e mais de 30 filmes, Buñuel é considerado um dos mais importantes realizadores na história do cinema. O surrealismo e ateísmo talvez sejam as características que lhe são mais associadas. Ora, Nazarin em nada vai ao encontro destas afirmações.
O filme é uma adaptação homónima de um romance escrito por Benito Perez Galdós, e conta a história de um padre que vive na pobreza, por opção própria. Um homem humilde, que contesta todas as mordomias que a Igreja reclama para si. Este modo de ver o mundo, e de nele viver, causa desconfiança aos demais: outros padres, aldeões e até aos que bondosamente ajuda, quer seja ao dar todo o seu dinheiro e comida, ou não se importando de ser roubado, pois, no seu pensamento, quem o roubou precisava dos pertences mais do que ele.
Num primeiro olhar poderia ser considerado um filme propagandista, com o objetivo de mostrar os valores cristãos e elevar a Igreja – mas é precisamente o contrário. Buñuel faz uma crítica subtil à instituição da Igreja Católica. Todos os padres, além do Padre Nazario, são vistos em casas grandes, mobiladas, até luxuosas, com fartura de comida e bebida, ao contrário daquilo que o protagonista tem.
Duas mulheres acompanham o Padre na sua peregrinação, e elas são mais uma das simbologias do autor, para retratar o que encontra de negativo na Igreja: uma está possivelmente apaixonada pelo Padre, segue-o movida por esse sentimento, e não pela sua fé; a outra é comparada a Maria Madalena (também por ser uma prostituta), e isto é uma maneira de colocar o dedo na ferida por parte do realizador: o protagonista é um homem de fé, mas as duas mulheres que o acompanham não, apenas debitam aquilo que ele diz, repetem a sua santidade e milagres a todos apesar do desejo do Padre para que não o façam. Rezam e acompanham-no, fazem a mesma peregrinação que Nazario, mas os seus interesses pessoais confundem-se com a fé, e isso demonstra que não acreditam verdadeiramente, ou pelo menos a um nível tão profundo como o herói da história – esta ideia é clara quando os três chegam a uma povoação que enfrenta uma praga de peste. As mulheres querem ir embora, fugir dali o mais rápido possível, mas Nazario fica para ajudar aqueles que precisam, sem preocupação por si mesmo.
Podemos então dizer que o Padre Nazario é atirado para um mundo cruel, onde a sua bondade inerente e inocente faz com que se aproveitem dele. Não deixa de poder ser feita uma comparação ao próprio Jesus Cristo, pela maneira semelhante com que eles se comportam (a generosidade, bondade, humildade, pobreza) e até pelos milagres que lhes são associados. Na ficção, muito deste Padre pode ser comparado a Dom Quixote, de Cervantes, ou ao Príncipe Míchkin, de Dostóievski: todos portadores de uma compaixão sem limites.
A prestação de Francisco Rabal (Padre Nazario) é sublime. O ator consegue criar uma aura em torno da personagem, que transmite uma presença importante e até imponente, mas ao mesmo tempo é um homem humilde e bondoso. A imponência da performance não está no ser cool, no facto de conquistar todas as mulheres, ou outro qualquer estereótipo associado ao protagonista masculino: a imponência está antes na beleza com que retrata a bondade, ternura e até magnânimidade que o Padre Nazario oferece ao mundo. Mesmo passando por todas as humilhações que acontecem durante a obra, nunca perde a fé, e isso chega ao espectador, que acredita na pureza de espírito daquele Padre. As atrizes secundárias que interpretam Beatriz (Marga Lopez) e Andara (Rita Macedo), as mulheres que acompanham a peregrinação, também têm prestações de alto nível, deixando sempre o espectador num limbo, no que toca à real devoção das suas personagens.
Não deixa de ser irónico que Nazarin, um filme crítico da Igreja, tenha sido escolhido pelo Vaticano, aquando a celebração dos 100 anos do cinema, em 1995, para figurar numa lista de 45 “grandes filmes”, estando inclusive incluído na secção de “religião”. Apesar de ateu e avesso à Igreja, Buñuel, com este filme, mostra-nos que respeita quem verdadeiramente tem fé, chegando a assumir, anos mais tarde, no livro “O Meu Último Suspiro”, o afeto que tem pela personagem do Padre Nazario e por pessoas como ele: o homem de fé verdadeira, e não de fé fabricada de modo a servir interesses pessoais.
Bastante bem recebido internacionalmente, esta obra foi selecionada para a Palma de Ouro em Cannes e, no mesmo festival, ganhou o Prémio Internacional. Não sendo uma das obras que vem à memória ao falar do realizador espanhol é, no entanto, um filme a não perder, quer pelas interpretações, pela história em si ou pela simbologia que esta carrega: um fenómeno que, ainda hoje, é atual.
Texto originalmente publicado em Septima.