A primeira sequência de imagens de “O Agente Secreto” marca o tom para tudo o que virá a seguir e é uma sequência que deixa o espectador sem respiração. É também uma curta-metragem que ficou por concretizar e que serve aqui de introdução ao filme.
É um impressionante tratado de suspense que deixa o próprio ar da sala de cinema denso, sente-se a transpiração, o calor, o incómodo que o corpo de Marcelo (Wagner Moura) transmite.
Naqueles minutos iniciais, torna-se impossível ignorar o significado poderoso do cadáver que permanece há dias tapado com um cartão no chão junto da gasolineira onde Marcelo pára para se abastecer. Este é o cadáver do dia-a-dia dos cidadãos brasileiros nos tempos da ditadura militar, é o odor a cadáver que já não sai do nariz, incomoda, está sempre lá, é a podridão que emana da ausência de democradia.
Visivelmente baleado, quase que se lhe sente o cheiro, há moscas pelo ar, é impossível ignorar o cadáver nauseante da ditadura brasileira e, no entanto, ele ali fica porque o Carnaval se meteu pelo meio e a polícia teima em não aparecer apesar dos clamores do funcionário da gasolineira.
É este o Brasil do filme, o que não hesita em festejar em cima de algo que está à vista de todos, mas que se evita mencionar ou mesmo ver. Também porque não se pode, é essa a natureza das ditaduras. A polícia aparecerá, sim, mas para farejar Marcelo, que se encontra fugido desde São Paulo, agora a caminho da sua cidade natal, Recife – sim, é ele o Agente Secreto do título.
Nesse mesmo momento, aparecerá ainda um carro com uma família a caminho das celebrações do Carnaval, mas mascarados de indígenas, num gritante momento de apropriação cultural. Ao mesmo tempo, o semblante daqueles mascarados não é o de celebração, mas o de alguém que vem sendo perseguido, como num filme de ação. É, os indígenas costumam ser os perseguidos, na vida real e nos filmes.
E é nessa dualidade contínua que se desenvolve “O Agente Secreto“, mergulhando no caos e na loucura de uma cidade em que o humor anda de mãos dadas com o perigo. É exemplo disso mesmo a sequência em que a perna cabeluda de um morto ataca os vivos, numa alusão a um episódio surreal que teve mesmo lugar no imaginário do Recife.
O papel dos jornais está igualmente impregnado dessa dualidade, pois é através deles que o povo se diverte com tais episódios, mas também onde os agentes da ditadura procuram pistas sobre os antagonistas do regime, é ainda nos jornais que se procuram pistas por entre as linhas da censura.
Durante vários dias, a notícia que domina os jornais, por sinal, é a de um tubarão encontrado com a tal perna humana, supostamente cabeluda, no estômago. Este é um momento igualmente simbólico, porque a perna é o resultado da perseguição do regime aos indivíduos incómodos.
Este tubarão da ditadura coexiste com a estreia no cinema de um outro, o “Tubarão” de Spielberg, ficcionado, que o filho de Marcelo tanto insiste em ir ver, apesar de não ter idade para entrar no cinema.
Sintomaticamente, o rapaz diz ao pai que mesmo não tendo visto o filme, já tem pesadelos com o tubarão. É este o ensinamento para as gerações futuras: não ter de ver o tubarão para ter medo dele.
A casa onde Marcelo se irá esconder, ao ir ao encontro do filho no Recife, é uma casa segura onde vai encontrar um sem número de outros homens e mulheres que se escondem dos tentáculos dessa mesma ditadura.
Num outro exemplo do realismo mágico em que “O Agente Secreto“ se compraz em mergulhar esporadicamente, a casa onde Marcelo vai viver já tem um amistoso inquilino animal, uma gatinha que só ele achará estranho ter duas cabeças.
Os próprios momentos em que surgem os foliões do Carnaval encerram a mesma dualidade que se detecta em todos os episódios mencionados. Apesar de a natureza do Carnaval ser pagã, é frequente surgirem demónios por entre quem se diverte genuinamente para esquecer as amarguras. Esses demónios são os que dão pesadelos a Marcelo, como se se tratassem da personificação de demónios reais ainda por debelar.
Os momentos do Carnaval são ainda a oportunidade de alguém como Marcelo desaparecer do alcance de olhares indiscretos, misturando-se com a turba que canta e dança, como se fosse um deles.
Há ainda dualidade no título do filme, que é tanto uma homenagem a um outro filme, protagonizado por Jean Paul Belmondo, como a referência ao personagem de Wagner Moura. Há, contudo, uma desconfiança que resiste: porquê agente secreto? A verdade é que o passado de Marcelo é explicado, mas o título deixa a dúvida.
Na verdade, pelo que se retira de cada um dos personagens, todos podem ser agentes secretos, todos vivem vidas duplas, desde a incrível Dona Sebastiana (Tânia Maria) até à Cláudia (Hermila Guedes). Na rua, essa dualidade também se respira, alguém pode ser repentinamente um assassino a soldo, pago pelos tentáculos da ditadura, ou um aliado.
Curiosamente, aqui, Kleber Mendonça Filho aborda também o papel dos agentes da ditadura em lugares chave, como o director da empresa ou grande industrial que acaba com o departamento de investigação onde Marcelo trabalha. A confrontação entre ambos, num jantar em tempos idos, embora clarifique o presente deste homem foragido, deixa uma ténue linha de suspeita quanto à sua verdadeira natureza.
Por tudo o acima descrito, “O Agente Secreto” é um filme extraordinário, sobre ele poder-se-ia-fazer uma tese, quer pelo prazer real que dele se retira ao ver, quer porque se agiganta um sem número de vezes mais depois de se o ter visto. É uma reconstituição brilhante de época, um portento de actores, nomeadamente o Wagner Moura, que está excepcional, é uma delícia sonora e uma delícia de fotografia.
É extraordinário na sua reconstituição da realidade, ou do que se julga ser a realidade, do imaginário da época, dos seus medos, da sua diversidade entre tanto negrume, da capacidade de resistência e de sonhar. Está ainda sempre presente o lugar do cinema como sítio de escape físico e emocional, retomando um pouco da paixão transposta para “Retratos Fantasmas”, o seu anterior filme.
Este é um daqueles filmes que corre mesmo o risco de ser consensual pelas melhores razões possíveis, é imperdível.



