“Ernest Cole: Perdido e Achado” é o mais recente trabalho de Raoul Peck, o realizador do aclamado “Eu Não Sou o Teu Negro”, nomeado ao Óscar de Melhor Documentário em 2017.
Se ali se havia debruçado sobre a carreira e a vida do escritor norte-americano James Baldwin, em “Ernest Cole: Perdido e Achado” Peck dedica-se a contar parte da vida do fotógrafo sul-africano Ernest Cole.
Peck vai recorrer a documentação, imagens de época e material de arquivo para mostrar o contexto histórico e social, e mesmo documentação pessoal do fotógrafo, cedida pela família – o seu sobrinho Leslie Matlaisane é o executor da herança de Cole e surge no documentário a contar parte da história.
Num exercício de autobiografia ficcional, Peck opta pela voz de LaKeith Stanfield para ter um narrador que faz as vezes de Cole, o que confere uma maior dimensão sentimental ao documentário.
O realizador dará início ao seu périplo na África do Sul, onde Cole nasceu, e ampliará a sua lente geográfica para as paragens por onde Cole se deteve, já que, exilado, viveu uma boa parte da sua vida na Europa e nos Estados Unidos.
Cole, exilado do seu país devido à brutalidade do Apartheid, procurou construir uma carreira longe das suas raízes, mas esse facto nunca o deixou sentir-se completamente confortável com a sua posição numa sociedade que vedava aos negros, na verdade, a possibilidade de uma vida sem sobressaltos.
A mudança para os Estados Unidos foi particularmente violenta, tanto pela distância em relação à família, como porque a terra da liberdade não representava nada disso para a população afro-americana. Se, de início, Cole pôde respirar, rapidamente percebeu que também ali se encontrava fora de pé, incompreendido, isolado, com poucos amigos e poucos contactos.
Peck dedica grande parte do documentário às imagens produzidas pelo fotógrafo, animando-as, a espaços, com vozes, sons ou música, movimentando-as para que ganhem nova vida. A maioria do trabalho apresentado em “Ernest Cole: Perdido e Achado” é pouco conhecido ou inédito, uma vez que após a sua morte, já nessa altura caído no esquecimento, o seu trabalho eclipsou-se.
É uma descoberta particular que constitui o ponto de partida para a existência do documentário, quando mais de 60 mil negativos de Ernest Cole em película de 35 mm são inexplicavelmente encontrados no cofre de um banco em Estocolmo, na Suécia, em 2016. Estavam considerados perdidos, especialmente os milhares de fotografias que tirou nos EUA.
Se, por um lado, Raoul Peck dá destaque a um grande fotógrafo negro que não obteve o devido mérito muito por culpa do contexto social e racial mundial nos anos 50, 60 e 70, tece uma teia de relações interessantíssimas.
Dir-se-ia que essas relações são tão interessantes quanto a vida de Cole, mas umas não vivem sem o outro e vice-versa. A comparação entre o brutal regime do Apartheid sul-africano e a terrível repressão norte-americana abatida sobre os negros é tanto uma surpresa como uma constatação de que essa comparação é, afinal, justa.
Ao mesmo tempo, é um espelho que transporta o espectador para os tempos actuais, mostrando que a História se repete e, na maior parte dos casos, não de modo positivo. Ao mostrar os diversos momentos do Apartheid, a sua evolução ao longo das décadas, move o espectador a confrontar-se com o abecedário das ditaduras e quanto o seu percurso é em tudo semelhante ao que acontece no presente em Gaza.
A única surpresa é que tudo esteja a acontecer como se saído do manual dos extermínios, do genocídio e da limpeza étnica e as reações das entidades internacionais sejam exactamente as mesmas. É uma excelente lição para o presente, não sabemos se para o futuro, já que a humanidade tende a não aprender com os seus erros passados.
Cole, se incompreendido e perseguido na África do Sul, passaria a ser incompreendido e angustiado nos Estados Unidos, onde o seu trabalho, inicialmente bem-sucedido e acolhido, passaria rapidamente à obscuridade.
Acusado de não mostrar a sociedade com a vivacidade que dele se esperava, certo é que Cole, deslocado no sul dos Estados Unidos em trabalho – contrariado porque também aí desenraizado – mostrou a realidade social dos negros norte-americanos tal como ela era, mas isso significava que não havia glamour a mostrar.
O seu olhar realista, directo, límpido, sem artifícios, resulta num trabalho documental, inevitavelmente racializado, mas invisível, sobretudo aos olhos de quem não estava na mesma situação.
A verdade é que aquele trabalho também era o resultado de uma situação pessoal, a de Cole, em que muito se encontrava em crise, desligado, em depressão. O seu passado não se conectava instantaneamente ao seu presente apenas pela genética partilhada e existia muita coisa entre os dois países, as suas culturas, que não permitia uma adaptação fácil.
Por outro lado, o olhar de hoje sobre as suas fotografias revela que o olhar de Cole estava muito à frente do seu tempo e, talvez devido a esse desfasamento, tenha sido incompreendido, até pelos seus pares. Seria apenas na Suécia que encontraria algum refúgio pessoal e para o seu trabalho, mas pouco tempo por lá se manteve e esse percurso também teve uma rápida conclusão.
“Ernest Cole: Perdido e Achado” é um importante documento para a exposição de uma figura importantíssima para o conhecimento das atrocidades cometidas durante o Apartheid, mas, no final, não exsuda a criatividade original de “Eu Não Sou Seu Negro“.
No fundo, são materiais diferentes que estão na origem de ambos, mas não será apenas isso que dita que “Ernest Cole: Perdido e Achado” seja um filme muito mais cristalizado e estático que o anterior.
A sensação que transmite é a de que a tentativa de animação da documentação fotográfica é um passo tímido de imprimir algo de vivaz num tronco narrativo que tem tanto para dizer de impactante que pode parecer meramente histórico, perdendo a razão da sua existência.
Talvez porque dividido entre a importância de destacar a História e destacar o indivíduo, “Ernest Cole: Perdido e Achado” perde um pouco de vitalidade. A vida do próprio visado, Cole, pode também estar na origem desse efeito, tendo em conta a relativa incógnita que o envolve.
Pese embora estas considerações, é um objecto importantíssimo de divulgação e aprendizagem, dando voz a um homem que, de outra forma, permaneceria imerso no seu manto de mistério.


