O Caso de Richard Jewell 2019 1 39

“O Caso de Richard Jewell” – A Falsa Culpa de um Herói Improvável

Na sua dedicação ao cinema de género, Clint Eastwood encadeia, filme após filme, uma forma de fazer e um método de filmar que o arvoram como um dos grandes cineastas “clássicos” do sistema de produção de Hollywood. A Eastwood reconhece-se-lhe esse classicismo no enquadrar, na leveza no modo de conceber o tempo dentro do plano e de plano para plano, mas sobretudo – e esta é uma marca que só a ele se pode evidenciar – a economia no uso da forma e dos meios fílmicos, uma em que só o necessário é filmado, em prol da clareza e da transparência que estão na base do melhor cinema narrativo.

A cena inicial deste “O Caso de Richard Jewell” é bem disso um exemplo: construída com travellings curtos e cirúrgicos que, efetivamente, mostram o modo deslizante como Jewell (Paul Walter Hauser) não só se movimenta, como também o anunciam como alguém que está atento ao que o rodeia – no caso, a conversa telefónica de Watson Bryant (Sam Rockwell) – e que assim o enformam como uma personagem de dádiva e não de extração.

O uso do plano médio e do plano aproximado de peito, em conjunção com o plano conjunto de dois (two shot), serve ao mesmo tempo para separar duas personagens e dois níveis socioeducativos – o funcionário de economato (Jewell) e o advogado (Bryant) – e, inversamente, para os conectar e ligar visualmente numa figuração da sua futura aproximação. Se o espaço em que se encontram é notoriamente fechado e recortado – um escritório de cubículos – tais características, enquanto espaço de realização fílmica, tornam ainda mais evidente a estilística de Eastwood: a) a economia no uso do movimento da câmara, na medida da necessidade de criar uma leve noção de suspense (Jewell ouve sem que o outro o saiba); b) a utilização de escalas acima do meio-corpo para corte na troca efetiva de informação entre as personagens; c) a pormenorização dos subespaços (gaveta) em que os objetos de ligação social e pessoal (os rolos de fita-cola e as barras de chocolate nela previamente colocados por Jewell) se encontram, de modo a criar deles mesmos “figuras-pormenor” (os objetos em si), formas memoriais para referenciamento e religação futura. Entre ser uma lição de encenação cinematográfica clássica – dada por Eastwood – ou a certeza de que ele próprio a conjuga, uma vez mais, como praticante, fica notada e é notória a validade quase intemporal dessa forma de fazer cinema: o cortar com uma só câmara, o montar através da construção de um plano sobre o outro, da posição de câmara para um personagem e o reverso posicionamento para a outra.

Num tempo em que muito do cinema de Hollywood se efetiva pela colocação em simultâneo de múltiplas câmaras para cobertura supletiva da ação, Eastwood, na sua aderência ao filmar do somente necessário, lembra sempre outro grande cineasta da simplicidade e da justeza do um plano para a sua função dramática: John Ford. Se assim se possa passar do estilo para a temática, também aqui Eastwood retoma um tema clássico: o do falso culpado (que tão fundamental foi para arquitetar uma “linha-tema” de carreira, como no caso de Alfred Hitchcock) que se vê perante uma situação extraordinária e que em muito excede a sua inscrição prévia no mundo.

Claro é que este “falso culpado” fílmico é muito mais do que só isso, é a corporização ficcional de um falso culpado muito real. A transferência do Richard Jewell real para o Richard Jewell ficcional não se faz sem que se torne muito clara a propensão e o posicionamento ideológico de Eastwood: é, uma vez mais, o indivíduo contra o sistema, o herói solitário que enceta uma guerra assimétrica, uma em que o mal que lhe pode ser infligido é desmesuradamente diferenciado – em seu prejuízo – do que aquele que ele pode causar à máquina cega esmagadora que é a “administrativa-burocrática”, a qual só pode ser vencida através da imperturbada e continuada perseverança.

Mas Jewell não é o pistoleiro dos westerns de Eastwood, não é uma figura imponente, seca e dura, alta e magra, é antes o oposto: mediano e doce, baixo e obeso. Ele quer ser, não o é. Aspira a ser polícia, mas é segurança de um evento. Não é cínico, antes preocupado com os outros. Acredita e respeita a lei, admira os seus agentes. Aí reside o choque: se ele é injustamente acusado de ser o bombista e não lhe é reconhecida a verdade de ter sido o verdadeiro herói que impediu que a bomba matasse mais do que aqueles matou, é porque aqueles que ele tanto admira o tentam fazer arcar com as culpas da(s) sua(s) própria(s) incompetência(s).

Quem o acusa é o próprio FBI, o organismo da lei e para a lei que tudo o faz para o enganar, tomando-o como um fraco e um ingénuo – ele que assim o parece, mas não o é realmente – passível de cair em engodos ridículos. A indignidade da “máquina-ordem” é tão maior porque funciona em perversão: não é só o agente do organismo “policial-jurídico” (FBI) que falhou durante a sua vigia, na noite do atentado – o Agente Tom Shaw (John Hamm) – quem mais o persegue, como é o próprio organismo que toma a palavra e o perfil mal traçado de Shaw como verdades confirmadas e que assim prossegue para a classificação criminal, descredibilização pessoal e crucificação social de Jewell.

Mais ainda, e num segundo grau de perversão, é o “organismo-média” que se junta ao organismo “policial-jurídico” para desenhar uma figura mediática que não corresponde a uma verdade qualquer. Kathy Scruggs (Olivia Wilde), a jornalista vaidosa e inescrupulosa, é a construtora da inverdade imagética, a fabuladora de um engano e de uma história falsa, levada pelo logro primeiro, formulado pelos que querem iludir e esconder as suas falhas. O perfil “criminal” e o perfil “mediático” de Jewell são as duas faces de um mesmo propósito: marcar o indivíduo, julgá-lo e destruí-lo.

Os heróis de Eastwood não vacilam, mesmo o mais improvável deles, como este Richard Jewell. A sua luta pela justiça, ele leva-a a cabo, apesar da sua crença – e no fim, na descrença – na correção da autoridade, através de uma energização paralela num oposto complementar, o da figura pistoleira de Bryant. É ele o lone gunman, o vociferador agreste, a postura ácida que desafia a “máquina-ordem” e os seus dois organismos em presença.

Uma cena há em que Bryant invectiva Jewell por deixar que o FBI o infantilize e armadilhe e sem que ele tome uma posição de enfrentamento. Jewell responde que não o consegue fazer, ele não é Bryant, um combatente de peito aberto. A dúplice figura de Jewell-Bryant, feita de temperança e agressividade, enquadra as qualidades basilares dos heróis de Eastwood: pela ordem em que tenham surgido, é sempre na mescla dessas duas que os seus protagonistas levam a cabo a sua “boa luta”, seja em prol de si mesmos ou das comunidades em que se vão inserindo. Uma terceira figura que aqui se pode incluir, a de Bobi Jewell (Kathy Bates), a mãe de Richard, ao mesmo tempo vulnerável e forte, também ela heróica, como outras mulheres o são no cinema de Eastwood.

No fim, o indivíduo derrota o sistema, a “máquina-ordem” não esmaga desta vez. Na ficção do filme como na realidade histórica, Richard Jewell é vindicado como o herói insuspeito e improvável que impediu uma tragédia maior no atentado bombista de Atlanta, durante os Jogos Olímpicos de 1996. Não disparou contra ninguém, mas foi, é e será um outro dos heróis do cinema de Clint Eastwood.

Skip to content