O Início
João Salaviza é um dos mais talentosos realizadores portugueses da actualidade. Este talento revelou-se cedo. Ainda enquanto aluno na Escola Superior de Teatro e Cinema, com a curta-metragem “Duas Pessoas”, mostrou a sua capacidade prodigiosa de filmar. A história é baseada num texto do escritor Herberto Hélder e narra um encontro entre um homem e uma prostituta. Salaviza adentrou com a câmara pela escuridão nocturna, que se adensa dentro de um quarto, onde os dois corpos se vão revelando em pequenos vislumbres pela minuciosa iluminação do cenário, e onde os pequenos objectos vão ganhando relevo. O gira-discos torna-se um elemento fundamental nesta curta, pois ao mesmo tempo que, fisicamente, o seu movimento acompanha os gestos dos actores – por exemplo, a cena em que vemos o braço da agulha baixar ao mesmo tempo que o casal se deita na cama -, ele é também a fonte da banda sonora, que cria uma atmosfera perfeita ao fazer sobressair a solidão e uma certa melancolia das personagens.
Esta curta venceu o prémio Take One!, no festival internacional de Curtas Metragens, de Vila do Conde. Os aspectos técnicos são pronunciados, visto que se trata de uma obra ainda no contexto académico: o uso do som, da iluminação, a forma como movimenta e posiciona a câmara… Mas, o realizador começa a descobrir uma preocupação nova quando filma “Arena”, em 2009. Curta que lhe valeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 2009.
A infância que se perde, esmagada por entre os guetos
Em “Arena”, a singular forma de sentir da adolescência, as suas histórias e problemáticas relações sociais começam a ganhar espaço nos seus filmes. Nesta curta, Mauro, um jovem que está em prisão domiciliária, é agredido e roubado por um grupo de adolescentes que vivem no mesmo bairro social.
Nesta fase, os corpos são efervescentes e trazem à flor da pele emoções que explodem num ápice. Quando estes corpos nascem e vivem confinados dentro de um gueto, então essas emoções serão sempre vividas com uma intensidade diferente, vindas de uma raiva crónica por existir a intuição indelével de uma injustiça social omnipresente. Afinal como dar vazão a esse acumular de marcas, de feridas que se vêm inscrever num corpo que luta todos os dias para sobreviver por entre espaços onde reina a violência, quando esta é um produto de uma força invisível que actua à margem destes indivíduos e, ao mesmo tempo, na concretude da sua pele? Mauro representa o jovem do qual se esperaria uma maturidade social capaz de perceber como o meio onde nasceu influenciou a sua forma de estar e de pensar. Afinal se todos partilham as mesmas formas de exclusão e a mesma privação, que força estranha é essa que divide em vez de juntar? Mauro, depois de perseguir o pequeno grupo de adolescentes que o roubaram, quando tem a oportunidade de se vingar, algo o faz parar. Talvez seja este mesmo pensamento, essa indelével intuição da injustiça social que vive diariamente, que o faz retrair a agressividade e ter consciência de que algo leva aqueles corpos a jorrar uma violência perpetua, que se reproduz a si mesma. Assim, o gueto torna-se arena de luta, que confina os corpos e os entrega a uma vida que se bifurca em dois polos radicais, matar ou morrer.
Salaviza filma, sobretudo, os corpos e os espaços onde estes estão inseridos. Os espaços são elevados à categoria de obra de arte quando o realizador opta por abstrair as linhas arquitetónicas e fazer delas os traços que vêm desenhar a composição visual dos seus enquadramentos – traço muito característico no cinema argentino. Os prédios circundantes formam a paisagem que contrasta com a silhueta de Mauro, que olha o céu como se nele estivesse uma esperança de uma comunidade por vir, mais justa. Desta forma, o realizador, mostra e enaltece os espaços que amiúde ficam à margem das telas que, hoje, são monopolizadas pela propaganda comercial e até mesmo por um cinema asséptico, demasiado limpo de todas as realidades sociais que compõem a parte mais obscura da sociedade.
Em “Rafa” (2012), Salaviza percorre esta mesma realidade de uma adolescência forçada e uma consequente adultez precoce.
Rafa vive em Almada e recebe a notícia de que a sua mãe terá sido detida pela polícia. Para conseguir visitá-la e esperar a sua libertação, atravessa a ponte 25 de abril com a moto de um amigo. Ao longo desta sua pequena viagem, Rafa vai deambulando pela cidade de Lisboa até chegar à esquadra. A certa altura, vê-se com um bebé nos braços que simboliza esse crescimento forçado através da chegada de novas responsabilidades que deve conseguir cumprir, mesmo numa tenra idade.
“Arena” e “Rafa”, junto com “Cerro Negro” fazem a chamada trilogia acidental que o realizador acabou por dedicar ao tema da prisão. Em “Cerro Negro”, uma mulher, acompanhada pelo seu filho, visita o seu marido na prisão.
A primeira longa do realizador. “Montanha”, surgiu no ano de 2015. Esta é uma longa peculiar, visto que o argumento é tão simples que caberia numa curta-metragem. Podemos dizer que esta sua longa é uma curta alongada. Ainda é a adolescência o tema central do seu cinema.
David é um adolescente que recebe notícia que o seu avô está hospitalizado. Ao mesmo tempo que lida com esta dor de uma perda que parece iminente, é obrigado a crescer ao ter de enfrentar uma nova realidade, onde a ausência do seu avô se torna a marca mais difícil de suportar. Todo o filme se foca em David, nas suas deambulações, nas suas paixões. Visualmente, o filme possui uma linguagem bastante poética, e conseguimos ver que aqueles traços que o realizador já possuía bem desenvolvidos na escola de cinema, em “Duas Pessoas”, são aqui postos em prática, agora ao serviço de um cinema já com o seu cunho autoral. A luz é usada minuciosamente; ainda notamos o uso dos planos que mostram as silhuetas dos corpos inseridas numa paisagem de intensa urbanização.
Os espaços como matéria viva
Os espaços urbanos e suburbanos continuam a ser aquilo que dá forma à vida comum e ao seu cinema na sua mais recente curta “Altas Cidades de Ossadas”.
Karlon Krioulo é um rapper cabo-verdiano que vivia no bairro da Pedreira dos Húngaros, e que uma noite decide voltar a esse mesmo espaço, mas aí, agora apenas pode encontrar uma asséptica “camada de progresso” que veio cobrir toda uma cultura criada pela sua comunidade que outrora ali habitou. Salaviza pretende fazer a terra falar, ter uma voz, assim como Karlon usa a sua para dar uma voz às coisas que nunca tiveram uma. Neste sentido, as tarefas de Karlon e de Salaviza aproximam-se, na medida em que a arte de ambos vem dar a ver e a ouvir formas de sentir que são empurradas para a margem por ventanias geradas pela feroz velocidade do progresso. Estas culturas populares espontâneas, que foram criadas à força e que são destruídas e varridas para debaixo de tapetes elegantemente betonados, remetem para a bela leitura que Walter Benjamin fez da pintura de Paul Klee, o Anjo da História. O anjo sofre uma torção que o dilacera. A sua cabeça está voltada para o passado e os seus olhos contemplam o acumular de ruínas que o movimento da história foi gerando ao longo dos tempos; ao mesmo tempo, o vento do progresso é tão forte que, ao bater-lhe nas asas, faz com que o seu corpo se desloque irremediavelmente em direcção ao futuro. Esta é a mesma torção que Salaviza vê em Karlon. O corpo deste é levado a revisitar aquele espaço e os planos do seu rosto, silencioso e contemplativo, mostram como o seu olhar revive o que aquele espaço foi, ao mesmo tempo que o seu corpo repousa sobre aquilo que fizeram dele.
Esta fase do cinema de Salaviza parece mudar um pouco a temática, mas essa mudança, em certa parte, é aparente, pois a essência continua lá. São sempre os espaços que o realizador foca e é a partir deles que as histórias têm vida. Os corpos passeiam por esses espaços, ora estes os confinam e os obrigam a um crescimento acelerado, ora são modificados e sacrificados por uma forma de sociedade que os denega, delapidando todas as formas de criação cultural que esses espaços um dia viram nascer. Os espaços são devires, são matéria viva que se modifica e que nos modifica. Salaviza mostra-nos, desde “Arena”, que a nossa subjectividade se preenche à medida que habitamos determinados espaços, e que existem forças externas, ressentidas, prontas a destruir espaços e a esvaziar sujeitos. O cinema torna-se também um novo espaço; um infinito espaço de resistência, indestrutível, por conseguir fazer persistir na memória todos os espaços reais e, na imaginação, todos os espaços possíveis.