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Semana da bizarrice em Cannes: “Kinds of Kindness” de Yorgos Lanthimos

Um filme sádico e hostil, que exibe com um certo orgulho o seu desprezo por quem chega aqui à procura de uma continuação do sucesso anterior do realizador, “Pobres Criaturas”.
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Já vamos para quase metade da edição 2024 de Cannes e esta, muito provavelmente, ficará marcada por um certo gosto pela bizarrice. Começou pelo filme de abertura, “Le Deuxième Acte” de Quentin Dupieux, um filme que se utilizava da metalinguagem para forjar uma espécie de subversão juvenil. Seguiu-se depois o muito aguardado Coppola com o seu épico descontrolado e de ambições maiores que a vida, “Megalópolis”, e o fim de semana atingiu o seu ápice com o último filme do realizador grego, agora alçado à condição de superstar, Yorgos Lanthimos, com “Kinds of Kindness”.

Assim como Quentin Dupieux, Lanthimos se apropriou da estranheza e do “gimmick” narrativo como seu cartão de visita, construindo uma filmografia que quase sempre fez uso do artifício como disfarce para ideias mal desenvolvidas. Lanthimos, que num passado não muito distante foi o menino-propaganda do que já foi chamado de “Greek Weird Wave”, apropriou-se da parte do “weird” e ganhou vida própria, transformando-se inevitavelmente numa marca. Quando tomou as rédeas da sua excentricidade por um instante e fez um filme mais palatável ao gosto dos americanos, “A Favorita” de 2018, passou definitivamente para o time do A-list hollywoodiano.

Mas não nos enganemos. Tal qual Dupieux, Lanthimos é um produto de Cannes. Foi aqui que ele foi apresentado ao mundo com “Dogtooth”, vencedor do Un Certain Regard em 2009. Depois, foi alçado à competição principal com “A Lagosta” em 2015, onde ganhou o prémio do júri, e novamente em 2017 com “O Sacrifício de Um Cervo Sagrado”. Este último aliás, que tinha Nicole Kidman e Colin Farrell como o casal central que era aterrorizado por um Barry Keoghan de 16 anos, partilha muitas semelhanças com o novo “Kind of Kindness”. Como no filme de 2017, Lanthimos cria um puzzle absurdista e arbitrário para a sua audiência resolver. O problema é que parece que nem mesmo ele têm as respostas para o joguete que criou.

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Paradoxalmente, a fama até fez bem ao cinema do realizador. Foi durante este período que ele produziu seus filmes mais interessantes, como o último, “Pobres Criaturas”, que mesmo tendo os seus inúmeros problemas, abraçou sem meias palavras a dimensão escapista do espetáculo.
Agora com “Kind of Kindness” Lanthimos parece querer rejeitar este pulo para dentro do mainstream e toda a atenção que os Óscares lhe trouxe. Para isso fez um filme sádico e hostil, e que exibe com orgulho o seu desprezo por quem chega aqui à procura de uma continuação do seu sucesso anterior.

O filme é composto por três curtas-metragens, em forma de tríptico, que não apresenta nenhuma relação aparente entre suas partes, mas que quer nos induz a acreditar que há uma conexão oculta entre elas. O elenco estelar, incluindo Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Hong Chau, Joe Alwyn, Margaret Qualley e Hunter Schafer, interpreta diferentes personagens em cada segmento e são essas performances que acabam por dar a sustentação ao filme. 

No primeiro dos três esquetes, Plemons interpreta Robert, um empregado submisso que trabalha para um chefe controlador, vivido por Dafoe. Diariamente, Robert recebe uma lista de instruções do patrão que ele segue à risca, contendo detalhes sobre o que deve vestir, comer e se teve relações sexuais com sua esposa. Em troca, ele recebe raras lembranças esportivas, incluindo, entre outras, o capacete amassado de Ayrton Senna, após o acidente automobilístico que custou a vida do ídolo brasileiro. No entanto, quando Plemons é instruído a provocar um acidente de carro em alta velocidade, que poderá ser fatal para o motorista do outro veículo, ele começa a questionar as consequências de suas ações.

Co-escrito por Efthymis Filippou, colaborador de longa data de Lanthimos, a dupla parece ter elaborado uma série de situações absurdas com a intenção de dissecar as complexas dinâmicas de poder entre indivíduos e examinar os limites da obediência e do sacrifício pessoal, assim como já o era no “O Sacrifício de Um Cervo Sagrado” e em “Dogtooth”.

A ironia, no entanto, reside na vacuidade com que essas questões são tratadas. As pretensões filosóficas e a suposta profundidade temática acabam se dissipando em meio à bizarrice gratuita que parecem ter a simples função de chocar. O resultado é uma caricatura desconexa que, ao invés de trazer luz às interações que Lanthimos se propõe a explorar, acaba por se perder em um labirinto de incoerências sem explicação, deixando o espectador a se perguntar, assim como Robert, qual será o propósito de tudo isso.

Quando questionado sobre seu método de escrita, Lanthimos afirmou que não gosta de “intelectualizar demasiado as coisas” e prefere seguir o seu instinto até ver onde a história o conduzirá. Em um filme que se propõe a examinar as obscuridades das conexões humanas de uma forma quase freudiana, e que faz constante uso da abstração como material de significado, a declaração não deixa de ser um tanto irônica. Talvez esteja aí, nessa colisão de contradições, uma pista para entender por que o cinema de Lanthimos não consegue se libertar deste cinismo nauseabundo que lhe faz tão mal.

Talvez se o realizador não visse o ato de “intelectualizar” como algo sujo e errado, ele pudesse encontrar um equilíbrio entre o absurdo e a profundidade e até, por que não, chegar à conclusão de que no meio de tanta bizarrice, também pode existir algo de belo.