Tão mau que é bom? Cannes finalmente desvenda “Megalópolis” ao mundo

Um desastre de proporções épicas, que talvez contenha uma obra visionária escondida em meio ao caos.
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Na conferência de imprensa de “Megalópolis” em Cannes, a primeira pergunta direcionada a Francis Ford Coppola parecia querer botar um verniz lustroso sobre uma situação que aparentava ser bem menos glamourosa. O realizador foi perguntado como se sentiu após ser aplaudido de pé por tanto tempo na estreia mundial do filme ontem à noite, no que Coppola respondeu orgulhoso “uma mistura de alívio e alegria”. 

O que Coppola provavelmente não deve saber é que existe um certo folclore criado em torno da onda dos aplausos cronometrados em Cannes. Todos os filmes, na verdade, são aplaudidos de pé na suas estreias por aqui, o que pode ser sim uma resposta entusiasmada sobre o que a audiência pensa sobre um filme mas na maioria dos casos, demonstra apenas uma forma respeitosa de acolher afetuosamente um filme em sua primeira exibição ao mundo.

Em se tratando da lenda viva que é Coppola, e do quanto o seu projeto era aguardado por cinéfilos do mundo todo, é bem provável que o gesto significou muito mais uma forma de respeito pelo acontecimento que é o seu “Megalópolis” do que de fato pelo seu desempenho artístico.

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Na sala logo ao lado, onde a sessão de imprensa acontecia quase em paralelo, as reações não podiam ser mais diferentes e forneciam pistas para uma resposta mais visceral: risos involuntários no meio de sequências feitas para serem levadas a sério e uma série de vaias quando o filme finalmente chegou ao seu fim. Tivesse Coppola participado desse visionamento teria tido ele um “reality check” mais próximo da realidade? Desconfiamos que sim.

Queremos com isso então afirmar que “Megalópolis” é um filme terrível? A resposta pode ser um pouco complicada. Há muita coisa para se admirar no filme do americano; um épico sobre ganância, corrupção e poder — temas recorrentes na filmografia de Coppola, e talvez de um risco jamais visto na história recente do cinema. No entanto, não deixa de ser irônico que um projeto dessa magnitude épica seja tão megalomaníaco quanto a história de egos enormes que quer contar.

O filme narra a reconstrução de uma metrópole após sua destruição acidental, com dois protagonistas — de um lado, um brilhante e ambicioso artista (Adam Driver), do outro,  um prefeito conservador e pragmático (Giancarlo Esposito) — travando um embate de visões opostas. O filme é pontuado por muitas referências à Roma antiga, incluindo cortes de cabelo à César e alusões a Hamlet, que aliás até inclui uma interpretação um tanto constrangedora do famoso “to be or not to be” pelo personagem de Driver.

Testemunhando agora o resultado final dessa empreitada, faz sentido que a quantidade de tempo que o realizador levou reescrevendo o seu guião e a forma obsessiva como tudo se desenvolveu teve um impacto significativo na gestação do filme. Coppola começou por escrevê-lo em 1983, e enfrentou sérias dificuldades para encontrar quem o bancasse. Num projeto de teor tão experimental, que se arrastou por 40 anos e com um orçamento na casa dos 120 milhões de dólares, a aposta parecia arriscada demais. Isso fez com que o realizador tivesse que financiá-lo do próprio bolso, vendendo seu império vinícola estimado em mais de 500 milhões.

Portanto, sim, “Megalopolis” é, infelizmente, um desastre de proporções homéricas, um filme que reúne ideias para uma dezena de filmes, acumuladas ao longo de quatro décadas, mas comprimidas numa única obra insana e descontrolada, que quer desesperadamente ser um testemunho dos tempos. É também cerebral e barulhento, de uma maneira que é inconsciente de seus próprios excessos, e que faz lembrar o espetáculo camp de “Showgirls” ou a parafernália ostentatória de outro famoso fracasso monumental, “Waterworld”, de Kevin Costner, que coincidentemente, também está aqui para apresentar seu novo épico de três horas “Horizon”.

Megalópolis chega então ao final da sua jornada a fazer jus aquele velho clichê do “é tao mau que até é bom”, um filme que se admira pelos seus esforços e intenções mas que falha gloriosamente na sua ambição artística. Mesmo assim, o filme nunca deixa de nos surpreender. Na apresentação do filme em Cannes, teve uma pequena surpresa para uma audiência que, confusa e incrédula, testemunhou um dos momentos mais originais da história deste festival (e que seguramente não será um spoiler, visto que será impossível replicar a experiência quando o filme for lançado comercialmente): no meio da exibição do filme, sem que ninguém desse conta, um ator sobe ao palco do cinema segurando um microfone de pé e, num momento à Woody Allen de “A Rosa Púrpura do Cairo”, começa a entrevistar a personagem de Adam Drive no filme. Assim, como se quisesse desafiar as (im)possibilidades da forma, Coppola fundiu performance e cinema, numa jogada impressionante que maravilhou e confundiu os presentes, muitos dos quais já tinham desistido do filme há muito tempo, mas que voltaram a prestar-lhe a devida atenção.

Há alguns dias antes da estreia do filme no festival, a revista Variety se perguntava num artigo “Poderá Cannes salvar Megalópolis?”. Em um filme onde a noção de tempo é constantemente examinada como um passo crucial para entendermos o futuro, talvez a resposta a essa pergunta só se revele plenamente em algumas décadas.

Talvez o caos desorganizado e sobrecarregado de ideias que é “Megalópolis” possa ser a marca de uma obra visionária que ainda não conseguimos compreender em sua totalidade. O que podemos afirmar por agora é que, como todo grande visionário e experimentador que é, Coppola nos obriga a reconsiderar as fronteiras da narrativa e a refletir sobre a essência e a função da arte, desafiando-nos a olhar para além das muitas limitações do presente.

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