LEFFEST 2018: «Suspiria» – Contemporâneo, Visceral, Libidinoso

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Foi com algum ceticismo que tomei conhecimento da intenção de Luca Guadagnino de recriar “Suspiria”, o primeiro filme da trilogia “As Três Mães”, do também italiano Dario Argento. No rescaldo do sucesso mundial de “Chama-me Pelo Teu Nome”, era difícil visualizar a transição entre ambos os projetos. Ainda para mais tendo em conta a filmografia precedente de Luca, que demonstra uma tendência inexorável para se debruçar sobre as idiossincrasias e sensibilidades de famílias italianas ricas, material que esmiúça brilhantemente, mas completamente distinto de “Suspiria”.

Assim, optei por manter algumas reservas, que se foram dissipando com o hype train iniciado depois da estreia do filme no Festival de Veneza e, por fim, com o meu visionamento no LEFFEST’18.

Tal como indicado por Luca, o filme não se trata de um remake, mas sim de uma recriação do original. Ancorado pelo universo das Três Mães criado por Dario Argento e Daria Nicolodi, o argumentista David Kajganich opta por expandir a história original, da qual acaba por divergir em absoluto na sexta parte.

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A premissa inicial mantém-se: Susie Bannion (Dakota Johnson), bailarina americana, chega à Alemanha para estudar na prestigiada Academia de Dança Markos, sob tutela de Madame Blanc (Tilda Swinton, colaboradora frequente de Luca). Saliente-se que Tilda é responsável por outros dois papéis, o de Mother Markos e o de Dr. Josef Klemperer, ecoando a Teoria da Personalidade de Freud. São três desempenhos notáveis, cuja mestria me fez recordar a tríade de personagens assumidas por Peter Sellers em “Dr. Estranhoamor”.

A ação desenrola-se na Berlim fracionada de 1977, mais concretamente no designado Outono Alemão, período marcado pelo rapto e assassinato de Hanns Martin Schleyer pelo grupo de extrema-esquerda Baader-Meinhof e pelo sequestro do voo Lufthansa 181 pela Frente Popular pela Libertação da Palestina. Acontecimentos que vão entremeando a ação principal do filme, sem nunca serem verdadeiramente explorados, levando o espectador a questionar-se quanto à sua necessidade. Pessoalmente considero que a temática central de uma academia de dança governada por um conciliábulo de bruxas com origens pré-cristãs dispensa temas acessórios.

Um outro aspeto a realçar é a ausência de cores primárias que pulverizavam o original. No atual são as tonalidades neutras que reinam, contribuindo para a criação de um ambiente frio e hostil à semelhança da academia de dança e da própria Alemanha da altura. Também a banda sonora, da autoria de Thom Yorke (Radiohead), é certamente mais contida que a original dos Goblin.

As cenas em que o filme verdadeiramente se destaca são as de dança: contemporânea, visceral, libidinosa, animalesca. Dakota Johnson, sem qualquer treino prévio, iniciou aulas dois anos antes do início das filmagens, alcançando resultados notáveis. Confesso que o meu primeiro instinto ao sair do visionamento do filme foi pesquisar se a peça Volk existia na realidade, até devido às semelhanças evidentes entre Madame Blanc e Pina Bausch. Descobri que as peças da última foram efetivamente uma inspiração para a coreografia de Volk, ainda que a sua existência – infelizmente – se limite ao filme.

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Um ponto em que “Suspiria” gerou discórdia foi a constante violência que as mulheres exercem umas nas outras no decorrer da trama. Efetivamente, a minha impressão inicial foi de algum desconforto. Porém, relembro as palavras de Gillian Flynn, argumentista, ao afirmar que Amy Dunne, de “Rapariga Desaparecida”, é a criação de que sente mais orgulho, por ter aberto caminho para mulheres más no cinema.

Efetivamente existem mulheres más, não muitas vezes representadas no ecrã, devido a uma tendência cinematográfica de revestir as personagens femininas em candura. Nesse aspeto “Suspiria”, à semelhança de “Rapariga Desaparecida”, subverte as normas, pelo que é expectável uma sensação de desconforto após o visionamento. Acresce que nenhuma das personagens é exclusivamente má, saliente-se a própria Mãe Suspiriorum que demonstra simultaneamente, na sexta parte, crueldade e compaixão. Assim, todas as personagens contêm uma pluralidade de características diversas, rejeitando categoricamente serem classificadas como “boas” ou “más”, o que não se me afigura ser censurável, antes pelo contrário.

Por fim, gostaria de salientar que há uma possibilidade bem real de ainda haverem mais filmes passados neste universo, como indicado por Guadagnino, que até pretendia inicialmente intitular o filme de “Suspiria: Parte Um”. Falou-se de uma prequela que explorasse a origem da Mãe Markos, passada seis a sete séculos antes de “Suspiria”. É uma oportunidade ímpar de responder a várias questões que ficaram em branco. Pessoalmente, ficarei a aguardar entusiasticamente o retorno das bruxas pela mão de Guadagnino.

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