Por esta altura, não é novidade para ninguém: o streaming revolucionou o consumo de televisão. Nem tampouco é novidade que esta revolução tenha começado pela mão da Netflix, que permanece com o monopólio do entretenimento, cercada por uma concorrência cada vez mais feroz.
Em Janeiro deste ano, superou os 300 milhões de subscritores, graças a um catálogo progressivamente recheado, descentralizado nas suas histórias, idiomas, géneros, elencos e orçamentos e, como é natural, difícil de acompanhar. Quantas vezes damos conta de não dar conta de tudo o que estreia na plataforma? Apesar de a rainha do streaming parecer, hoje em dia, mais preocupada com quantidade do que qualidade, uma coisa é certa: desde o início, a Netflix viabilizou a procura por uma história bem contada em televisão, ao quebrar maus hábitos que se provaram datados.
Em 2013, com a estreia de “House of Cards”, a Netflix quebrou um paradigma muito significativo da indústria. Desde sempre, o declínio da popularidade de um ator de Hollywood era espelhado pela sua contratação em televisão. Quando o grande ecrã não mais o queria, uma estrela tinha de se contentar com o pequeno para sobreviver. A partir da década de 2010, a adaptação do romance homónimo do inglês Michael Dobbs, antigo conselheiro de Margaret Tatcher, propôs uma premissa diferente. Transcrevendo os bastidores da política britânica para os Estados Unidos da América, o criador da série Beau Willimon viu-se a braços dados com uma equipa de pesos pesados do Cinema. Com os papéis principais atribuídos a Kevin Spacey e Robin Wright, a série foi ainda produzida e realizada, em parte, por David Fincher, o autor de “Seven – 7 Pecados Mortais” (1995), “Clube de Combate” (1999) e “A Rede Social” (2010). A par de uma equipa especialista em storytelling clássico, se não reinventou as regras dramáticas, a primeira produção original da Netflix contou com uma campanha publicitária à escala global, digna de um típico blockbuster de verão.
Nas centenas de produções originais que se seguiram, constam séries bastante elogiadas como “Orange is the New Black”, “Narcos”, “Stranger Things”, “The Crown”, “Ozark”, “Emily in Paris”, “Bridgerton”, entre outras. Na concorrência, companhias como a Amazon e a Apple começaram a investir na sua própria programação, com produções a variar desde “Goliath”, um drama de crime protagonizado por Billy Bob Thornton, a “The Morning Show”, com Reese Witherspoon, Jennifer Aniston e Steve Carrel, sobre os bastidores do primetime dos EUA.
Noutro lado da indústria, as clássicas marcas do cabo norte-americano reconheceram os méritos de uma nova geração de contadores de histórias aliada ao marketing impulsionado pelas estrelas do cinema internacional. Dentro desta reforma, deve-se mencionar, igualmente, o contributo da HBO, que estreou o drama político “The Newsroom”, protagonizado por Jeff Daniels, o policial “True Detective”, protagonizado por Matthew McConaughey e Woody Harrelson, e a ficção científica “Westworld”, com o lendário Anthony Hopkins. Também a Paramount, um dos estúdios hollywoodianos de maior longevidade, com o próprio departamento televisivo, chamou Kevin Costner para liderar o faroeste “Yellowstone”, que se desentrelaçou num universo de prequelas e sequelas por direito.
No entanto, um novo fenómeno deve ser salientado. Enquanto o cabo se mantém apegado à estratégia comercial de sempre – um episódio por semana –, o streaming veio proporcionar um conforto que, previsivelmente, não demorou muito para ser dominante e, por consequência, ditar para que lado o lucro se haveria de virar. Ao disponibilizar uma temporada inteira de uma vez, à distância de um clique de ser consumida numa semana, num par de dias, numa madrugada se fosse preciso, o streaming foi ao encontro do espetador frustrado pela espera semanal de um novo episódio da série favorita, refém de um cliffhanger – expressão tradicional para designar um final deixado em suspense.
Se o streaming terminou o sacrifício dessa espera, o que trouxe vantagens – os críticos podem despachar as suas colunas e a produtora tem uma maior manobra de calendário para estreias seguintes –, veio acabar também com aquele que é, discutivelmente, um dos medidores mais confiáveis do sucesso de uma história: a antecipação.
O consumo contemporâneo de televisão está de tal modo acelerado que tem sido responsável, em parte, pela crescente velocidade de produção que tem sido exigida aos escritores, técnicos, elencos e realizadores. Ora, quanto menor for o tempo de conceção de uma série, menores serão as chances de augurar um produto de qualidade. A pressa é inimiga da perfeição. E criatividade e capitalismo nunca foram os aliados mais amigáveis.
Da mesma maneira que, há uns anos, públicos de todos os feitios começaram a se desinteressar pelo cinema comercial e encontraram entretenimento de maior qualidade em televisão, o que hoje se verifica, ironicamente, é um desprendimento emocional das histórias que nos chegam à sala-de-estar ou ao portátil. No meio de incontáveis títulos a estrear no streaming todos os anos, quantas pessoas carregam a perceção de não existirem mais séries como dantes, que acusam uma experiência mais descartável, esquecível a longo prazo? Afinal, o que é que está a faltar?
Quando se examina os maiores sucessos da História da Televisão, apercebe-se de que aquilo que os espetadores, por mais diferentes que sejam, querem genuinamente de uma série não é um enredo com a eficácia dos noventa minutos de um filme, nem tanto os sensacionalismos audiovisuais (carros, explosões, sangue, morte, sexo), mas um ingrediente-chave que nunca passou nem jamais passará de moda numa história bem contada: as personagens.
O denominador comum de todos os títulos citados são as caras de todos os episódios, cujas perspetivas e peripécias acompanhamos durante dezenas de horas, com quem criamos laços e nutrimos empatia, nas boas e más decisões. Convém reconhecer que, antes de a linguagem audiovisual e as técnicas narrativas do cinema serem acolhidas pela televisão, que é, aliás, o corrente modelo-padrão, o pequeno ecrã tinha poucas preocupações estéticas além das personagens e das respetivas aventuras.
Neste aspeto, muito mais que o drama, a comédia serve de exemplo. As comédias clássicas da televisão tinham o principal objetivo de nos incentivar a acompanhar as personagens, torcer por elas durante muitos anos, como se de nossos amigos se tratassem. Enquanto os décores, a fotografia ou a banda sonora permaneciam inalterados, o derradeiro pilar de séries como “Seinfled”, “Friends”, “The Office” (versão inglesa e versão americana), “How I Met Your Mother”, “Modern Family”, “Parks and Recreation” ou “Brooklyn Nine-Nine” sempre foi o desenvolvimento das personagens e das situações caricatas ou sérias em que se metiam. Para cada uma delas, sem que nos apercebêssemos ou antecipássemos, a despedida estava há muitos anos a ser cozinhada e o seu efeito haveria de ser prolongado e inesquecível.
Portanto, face à natureza despida de embelezamos audiovisuais da comédia, a televisão dramática tomou apontamentos, originando produtos de grande influência. Não obstante uma temporada final muito divisiva, os guionistas David Benioff e Daniel Brett Weiss sempre souberam que, mais do que das batalhas sangrentas e dos dragões do universo literário de George R. R. Martin, o sucesso de “Game of Thrones” dependia das dezenas de personagens e das complexas relações entre elas. Aquando de amores, traições, mortes, disputas políticas, assassinatos e vinganças, o impacto deixado no espetador seria muito maior do que se esse investimento emocional não tivesse sido feito. O resultado foi uma das séries mais elogiadas de todos os tempos.
A lição que o streaming deveria recuperar é tão antiga quanto as melhores histórias que podemos encontrar em televisão: não ter pressa. Tomando balanço, de novo, do catálogo clássico da HBO, a melhor professora será uma série antecedente que cumpriu, magnificamente, todos os requisitos a que a televisão contemporânea se deveria propor: “The Sopranos”, criada por David Chase.
Um dos principais requisitos de uma boa história é o vínculo emocional com a personagem principal. Para bem gerar este vínculo, é necessário acompanhá-la, conhecer o seu discernimento nas boas e más decisões, o seu contexto, o seu passado, a sua rotina, objetivos e infelicidades. Não se pode subestimar o vagar que a televisão dispõe, muito mais do que a sétima arte, para que esse tempo esteja disponível.
Naquele que se poderia considerar, hoje ou ontem, um veículo dramático autoexplicativo e redundante, David Chase, um guionista e produtor de televisão veterano – já havia vencido um Emmy por “The Rockford Files”, uma série de mistério de 1974 –, estabeleceu uma premissa simples, atraente, consentânea com uma necessidade de criação pessoal, em linhagem com entretenimento mainstream e bastante indicativa do tom do universo que estava prestes a desenvolver: um mafioso entra no consultório de uma psicóloga.
Porque é que os submundos de gangsters continuam tão interessantes para o espetador que, na melhor das hipóteses, não mimetiza os seus comportamentos violentos? Confrontado por esta e semelhantes perguntas, David Chase imagina que a sedução parte de uma ideia de liberdade e da fantasia primitiva de poder que habita o nosso subconsciente, ao invés de uma alegada glorificação de crueldade e crime. No entanto, o genuíno objetivo de Chase, desde o início, é apelar às nossas capacidades mais profundas e rebuscadas de enfatizar com um ser humano, essencialmente, mau, enquanto cumpria a ambição que partiu de um sítio muito íntimo e negro: contar a história sobre a sua relação com a mãe.
Este Tony Soprano, interpretado por um lendário James Gandolfini, por mais agressivo, narcisista, hipócrita, pecador e psicopático que seja, nada mais é do que um ser humano, um homem de carne e osso propício à depressão, oriundo de um contexto familiar e social e de uma cultura que, como fica evidente mais do que uma vez, engole o indivíduo em dependências emocionais, financeiras e psicológicas, mesmo para quem tenha uma fé sólida no livre-arbítrio.
Em último caso, este protagonista serve de metáfora ambulante para uma variedade de assuntos: a facilidade em nos tornarmos vítimas das próprias infelicidades e não nos apercebermos de que são monstros da nossa criação; o amor que nos leva a negar a toxicidade do seio familiar ou social; ou a importância de reconhecermos que cada semelhante é fruto do seu berço e de uma sucessão de boas e más escolhas.
Além de um trabalho exímio de ponto-de-vista, influenciado por marcos do Cinema como a trilogia “O Padrinho”, “The Sopranos” é um carimbo absolutamente pessimista da condição humana, dado que não propõe nenhuma “cura” ou redenção para a inquestionável malvadez do protagonista. David Chase conseguiu a proeza de, ao longo de situações cómicas e sérias, nos manter a torcer por esta personagem vil e bestial, sem que nos apercebêssemos da admiração que fomos lentamente nutrindo por um assassino sem escrúpulos e remorsos, um autêntico vilão. Talvez não estejamos tão longe de um Tony Soprano quanto queremos pensar.
Num universo masculino de personagens de igual ou pior índole, é natural que, aos nossos olhos, que assistimos às suas mesquinhices, cobardias, contradições, ilusões e infelicidades, a única salvação de Tony Soprano seja o amor que nutre pelos filhos e a descoberta contínua daquilo que foi a sua infância: a negligência de um pai violento e ausente e os traumas psicológicos provocados por uma mãe desequilibrada e vingativa, em jeito de paga por um matrimónio falhado, interpretada pela excecional Nancy Marchand. Não obstante dezenas de maldades premeditadas, egoístas e perfeitamente conscientes em idade adulta, há que reconhecer que as cartas que Tony recebeu no berço não foram favoráveis. Até para nascer é preciso ter sorte.
No que a este aprofundamento diz respeito, algumas das cenas mais impactantes não se resumem a mais do que uma conversa: Tony Soprano, por necessidade ou compromisso de agenda, senta-se no pacífico consultório da Dra. Jennifer Melfi, interpretada por Lorraine Bracco. De uma verdade bruta e crua, estas inúmeras cenas escavam pelas miudezas da personalidade deste paciente, que entra amiúde em negação ou rodopios de violência verbal e física, não fosse ele um mísero ser humano examinado na sessão semanal de psicoterapia. Ora, fosse “The Sopranos” uma série da era do streaming, muitos poderiam considerar desnecessário, aborrecido e repetitivo este checkpoint, presente em quase todos os episódios.
Acontece que “The Sopranos”, não sendo igual às demais e tendo tido a boa fortuna de estar à frente do seu tempo, reconheceu a importância crucial de passar tempo com as personagens, mesmo aquele em que, na extensão de um qualquer dia da semana de trabalho, “nada acontece”. São nestes intervalos em que nada acontece que as personagens, tal como nós, se podem dar ao luxo para uma atividade subvalorizada, esquecida no ritmo desenfreado do Ocidente capitalista, que requer ponderação, paciência e alguma coragem: pensar. Às vezes, é importante encher chouriços.
Tal pode ser aplicado a Tony Soprano e a inúmeras outras personagens inesquecíveis. Por muitos episódios, acompanhamos a trupe italo-americana de Newark em aventuras que, provavelmente a longo prazo, não terão consequências fraturantes. Para que serviram episódios inteiros dedicados àquelas vezes em que Christopher Moltisanti, o sobrinho de Tony interpretado por Michael Imperioli, quis vingar na indústria da música ou do cinema; ou em que Paulie Gualtieri e Silvio Dante, os capitães de Tony interpretados por Tony Sirico e Steven Van Zandt, sequestraram um sócio judeu que pouco retornou a aparecer; ou em que Corrado Soprano, o tio de Tony interpretado por Dominic Chianese, terminou abruptamente uma relação por a companheira divulgar a habilidade deste para performar o sexo oral?
Poderíamos afirmar que são excessivos, inconsequentes, oriundos de telenovela. Em contrapartida de séries com um fio condutor premente por toda a trama, “The Sopranos” é, por outro lado, conduzido pelas personagens, por diversas situações e reviravoltas que se lhes vão surgindo e, aí sim de imediato, desenvolvem, comprometem ou desfazem o entendimento que cada uma faz sobre si própria.
Como se já não fosse suficiente entretenimento de excelência, ainda funciona como um poderoso espelho de um país que permanece refém de si próprio, um sonho de nação derrubado e entregue aos oportunistas e criminosos, uma América da violência, do saque, da misoginia, das segregações étnicas, das instituições corrompidas e do populismo.
Não haja dúvida: a série beneficiou do tempo e do espaço em que foi transmitida, integrante da era clássica da HBO, que, anos mais tarde, proporcionou outras produções de requinte, como “The Wire”, o policial estreado em 2002, e “Boardwalk Empire”, o drama histórico de crime estreado em 2010. Além disso, qual herança do estabelecimento de Tony Soprano como uma das grandes personagens da História da Televisão, imensos escritores contribuíram para muscular esta que pode ser apelidada da era do anti-herói, graças a figuras como Don Draper, o diretor publicitário interpretado por Jon Hamm em “Mad Men”, e Walter White, o professor de Química aspirante a traficante de metanfetamina interpretado por Bryan Cranston em “Breaking Bad”, lançadas em 2007 e 2008 pela AMC.
Ainda que a base sólida de fãs se fortaleça com novas gerações que têm descoberto “The Sopranos” nos últimos anos, é irónico que a atual era do consumo rápido consiga desviar as atenções para produtos indiferentes na cultural popular. É compreensível que o compromisso de investimento de tempo numa só história – estamos a falar de oitenta e seis horas – pareça algo repelente para muitos apreciadores de televisão. Contudo, como qualquer bom investimento, terá um lucro duradouro e insubstituível.