25 de Abril

“Uma miúda com potencial” que demonstrou o quanto a Crítica está fragilizada

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Não guardo, nem expresso estima alguma pela chamada “crítica de cinema para indústria” como aquela que a Variety produz continuamente. A estes específicos textos falta pensamento, arrojo e até mesmo estilo. São ‘coisas’ automáticas, muitas delas produzidas à pressa e com olho aberto no modelo requisitado, porém, cabe a mim defender este tipo de crítica no sentido em que a sua condição poderá funcionar como o derradeiro bastião da arte nos EUA. O episódio mirabolante que suscitou a esta minha posição vem de uma crítica direcionada ao filme “Promising Young Woman” (“Uma Miúda com Potencial”), primeira longa-metragem de Emerald Fennell, que tem sido apontado como uma das potenciais obras desta temporada de prémios, sobretudo pelo desempenho de Carey Mulligan. [ler aqui].

O texto, da autoria do veterano Dennis Harvey, elabora uma crítica à interpretação da atriz, referindo que o seu papel facilmente corresponderia a uma Margot Robbie (visto ser produtora do projeto), do que para “cara” associável a “A Grande Gatsby” ou “Uma Educação”. Devendo salientar que a própria crítica tece elogios a Mulligan, considerando-a “a fine actress” (uma atriz requintada), os efeitos não tardaram a surgir. Em uma entrevista, a própria atriz mostrou-se indignação para com a publicação, sugerindo que o texto questionava a sua “sensualidade”, e com isso atirando-se a uma dominante visão patriarcal e subversivamente masculina que abunda nessas mesmas “águas”. Assim, içou-se uma quantas bandeiras do #Metoo e a Variety, com receio das represálias à sua publicação, decide emitir um pedido de desculpas no referido texto. Passo a citar, pela “insensibilidade do crítica para com a arrojada e corajosa interpretação da atriz.

Toda esta “novela” remete-nos a vários problemas que reforçam ainda mais a fragilidade da crítica de cinema nos dias de hoje. Primeiro, pelo uso da Crítica como meio de promoção, e como bem sabemos a publicação em questão é uma das maiores influenciadoras da indústria em geral, desde agentes a distribuidores, com um dedo “culposo” na award season. Segundo, pela sua cedência ao politicamente correto e das causas que se integram nas fontes de capitalização, e terceiro, e possivelmente a mais agravante e questionável, a liberdade artística e opinativa do crítico, deixando este à mercê de decisões e propósitos editoriais. A Variety vergou pela pressão mediática, ou se calhar pela falta dela, e sim, pela desaprovação da estrela em questão que levantou vários problemas à suposta crítica e à sua “comunidade”.

E um pedido de desculpas da parte editorial, etiquetada no texto, nestes contextos atuais onde a pós-verdade adquire ainda mais força quando o encaramos com uma espécie de fact-checking da crítica de cinema norte-americana, como se a “opinião” expressada neste tipo de textos merecesse um polígrafo socialmente aceite. Para isso já existe um Rotten Tomatoes, que tem reduzido esta arte a um código binário de “tomate fresco” e “tomate podre”, onde os textos não são mais tidos como peças de criação, mas resumidos e traduzidos a percentagens e medidas métricas.

Mas pelos vistos não fui o único a ficar indignado com este episódio, o crítico britânico Peter Bradshaw (por quem também não tenho simpatia alguma), recentemente, concentrou todas as suas forças para defender Dennis Harvey num artigo da The Guardian [ler artigo], antecipando não concordar com a sua crítica, mas sublinhando que o que estava em jogo é a própria solidez da instituição crítica. A própria publicação permitiu a Harvey defender-se quanto ao sucedido [ler artigo], e quanto às acusações de misoginia e de denegrir a “sensualidade” de Mulligan, o crítico respondeu o seguinte: “Eu sou um gay de 60 anos. Eu não fico a pensar e a comparar a sensualidade entre jovens atrizes, muito menos escrever sobre isso.”

O que para muitos é um incidente insignificante, é só uma acha para aquilo que temos testemunhado no percurso da crítica e do crítico; a sua sobrevivência numa selva feroz e cada vez mais competitiva, pelos embarques de ideologias como reforçadas proteções e pelo gradual desprezo e inutilidade com quem tem sido recebido e encarado nas mais diferentes plataformas. A crítica de cinema é mais que opinião e promoção, é uma forma de expressão, ainda hoje, subvalorizada e quiçá, banalizada. Carey Mulligan apenas reforçou essa ideia de segundo plano.

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