25 de Abril

A Cidade Perdida de Z – A Noite de um Outro Lugar

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A impossibilidade do inatingível é a fortitude da ambição e do sonho de o atingir. Entre a demanda de Percy Fawcett (Charlie Hunnam) e o tema de James Gray, avulta um grande desconhecido – esse impossível do nosso contemporâneo, onde aparentemente tudo se conhece já – e um grande rio que sobe, em contraponto de si mesmo, até uma nascente – um fim-começo – que é via e dificuldade, parede e abertura para outros mundos e outras coisas, outras formas e outros corpos.

O colonial era discurso, o rebaixamento das corporalidades outras era total, as economias eram as da subjugação e da extorsão, os recursos próprios as coisas a tirar. E por isso, o rio subia. Subia para a procura desse impossível de chegar: a perfeita cidade, iluminada e feita de um ouro bem diferente da preciosidade de metal raro. O solo arado no meio da floresta tropical e selvagem, a sua terra preta – a contrária da terra enegrecida pelo esburacar e cair das bombas da Primeira Guerra Mundial – é terra viva, feita para dela se tirar proveito equilibrado e sustento necessário.

Justamente o necessário contra o demasiado, o desequilibrado e o desnivelado: na sua caça inicial, Fawcett mata o cervo em ritual de sangue, para sacrifício e amostragem da valentia, estatuto e patente militar. Fecham-lhe a porta, no entanto. Nome e valor não se adequam ou equivalem. Na selva, tem que matar o animal ou morrerá à fome. Mata. Come. Transfusão. Valor do animal. Deu-se para nutrir. Necessidade cumprida. Que equivalência? Terra tira, terra dá. O equilíbrio com o natural sempre se efetiva, cedo ou tarde, mas sempre definitivo. O que Fawcett retira, terá sempre que adicionar.

A ânsia de alcançar é a sua dívida para com esse natural, esse verde infinito que lhe esconde e nega a sua cidade perdida. Pelo meio, nessa luta desigual, o sacrifício. Fawcett dá o corpo e a alma à procura, submete-se à chuva, à maleita, à água revoltosa, ao calor sufocante, à imprevisibilidade de um caminho correto, mas olha sempre para cima – na realidade como nos sonhos – para a canópia amazónica, para o topo das árvores que se enredam com o céu, para a humidade vaporosa que é neblina e respiração. Os ramos são véus que escondem, as folhas são tecidos que obscurecem, mas são as formas e os desenhos de um lugar não abandonável, sempre transposto, pela mente e pela mão, como uma espacialidade insaciável: as imagens-selva de Fawcett ultrapassam a cegueira momentânea do gás de cloro, ele sonha-as e elas sonham com ele, são presenças e fantasmas da terra húmida e preta que o faz dela e só dela. Mesmo quando já fugazes, esvanecidas enquanto desenhadas num pequeno pedaço de papel, elas são potências do longínquo que ainda não foi alcançado na sua totalidade.

O sonho só se pode concretizar pelo continuado falhar da sua concretização. Sempre regressa, sempre volta a subir, rio e selva, desvio e prossecução. O mapa é impossível. É o ato que define Fawcett: sentido e vetor. No labiríntico do sem caminho correto, é a vontade – e a sua energia e petulância – que o impelem. Ao sacrifício soma-se a objetividade de um propósito, que só a ele mesmo é verdadeiramente plausível: o de continuar a procurar para além do razoável, para além do aceitável.

A individualidade como tema dessa mesma continuidade irredutível: afinal o rio desce, é Fawcett que o sobe, imparável, separado da família direta durante anos, cortado do crescimento dos filhos, afastado do verniz civilizacional, sempre para montante, cada vez mais para cima, cada vez mais para lá. Mas mesmo essa sua individualidade – feita de carácter pessoal – não o desvia da sua valência comunitária-antropológica: ele valoriza a ideia do grupo social que se harmoniza com o seu meio envolvente. Não há indígenas, há povos e formas de viver. A simplicidade desses modos de integração manifesta-se na cena do pescar: não há linha nem anzol, somente um pó que atordoa os peixes. Da água só se retira, uma vez mais, o necessário. Os que não são para alimentação, são deixados ir. Subtração justa, relação somada. Entre o grande comunitário (do desconhecido) e a célula familiar, o maior dos dilemas de Fawcett: para que lado pender? O sonho inalcançável ou o amor certo e concreto? O não desistir ou o ficar e estar? A cúpula verde ou a casa estável? O desaparecimento ou a glorificação do nome, por fim estabelecido e respeitado? Fawcett não pode deixar de perseguir o desígnio desse impossível que o anima, mas sobretudo não pode deixar de buscar o assento de um ar e de um espaço que é o superlativo da negação pela afirmação da positividade absoluta: mesmo que a cidade lá não esteja, está sempre a ideia de uma convicção, existe porque se faz figura da própria razão de nela acreditar.

O último terço do filme é a resolução para sempre aberta. O caminho não poderia levar que não ao seu fim e ao seu novo princípio. Acompanhado pelo seu filho Jack Fawcett (Tom Holland), Percy redesenha e cumpre todos os passos dos caminhos já conhecidos, mas o embrenhamento final, e de novo, para lá da nascente do rio, para lá das outrora habitadas partes da selva – onde ela já retomou espaço, já as equilibrou – ele segue para o desconhecido geográfico, para uma outra canópia que se esconde dos céus e que não tem caminho discernível, ele passa a estar para lá do que ele e só ele conhece. No cimo total, para lá das entradas que já não se podem atravessar, ele fica para lá e sobre a História. O seu legado só se pode definir pela suposição, dúvida da lenda e mitificação do nome e dos seus últimos atos.

Perante a última tribo, ele dá-se ao destino. Os anciãos reconhecem que ele não pertence a nenhuma esfera: nem àquela de onde veio, nem àquela que ali o tem. O ritual antropológico, a bebida alucinogénica, os fogos amarelos, a água atravessada, o ver as memórias da carta lida pela sua mulher – Nina Fawcett (Siena Miller) – são já de um estado outro, um acima e além, o da passagem do corpo para a alma e destes dois para uma dimensão que não pode ser descortinada. É nesta sequência que James Gray mais alinha o seu filme – visual e atmosfericamente – com o Apocalypse Now de Francis Ford Coppola, também ele um filme do psicadélico, dos fumos e vapores coloridos a crepitarem no terroso iluminado por fogueiras. Dela ascende uma panorâmica, ao fundo a luz clareia a noite de um outro lugar: chegou ele à cidade perdida? Ficou ele por lá? As figuras míticas não têm que responder. Mas cabe aos outros sempre perguntar.

© 2022 Luís Miguel Martins Miranda

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