O complexo “Angel’s Egg” não tem começo, meio e fim. Não tem o antes, e não tem o depois. Uma obra revolucionária na história da animação japonesa – talvez seja a melhor obra vinda do panorama do anime de ficção científica que nunca se ouviu falar.
É um trabalho de um jovem Mamoru Oshii, que não conseguiu ser um sucesso na sua estreia. Foi neste OVA (Original Video Animation) que o realizador deu os primeiros passos no universo cyberpunk, servindo como base para o que estaria por vir uma década mais tarde – a obra de culto “Ghost In the Shell”.
“Angel’s Egg” é descrito popularmente como uma “pintura animada”, com cerca de 80 minutos de duração, escassez de diálogos, um grafismo surrealista e uma trilha sonora bela e aterradora.
Não há uma explicação formada do criador sobre o significado do filme, portanto, cada um é livre de divagar em interpretações de natureza particular e elaborar as suas próprias teorias, o que foi significativo para criar o enigma que é Angel’s Egg.
Mamoru Oshii estudou num seminário na sua juventude, acabando por desistir da vida de sacerdócio. Ficou com o conhecimento dos temas teológicos, o que ajudou a criar toda a aura mística do filme.
“Angel’s Egg” tem um enredo superficial bastante simples: num mundo pós-apocalíptico de clara influência gótica, uma menina, sem nome, de longos cabelos brancos, carrega consigo um ovo, constantemente protegido pelo seu vestido. Mais tarde encontra um homem, não identificado carregando uma arma nos ombros. A rapariga aceita a companhia do homem misterioso enquanto ela regressa para onde mora. “Angel’s Egg” tem como inspiração o Antigo e Novo Testamento, em particular o episódio do Grande Dilúvio. Tirando isso, é um enredo avant-garde, críptico e minimalista, – uma história aberta, bem ao estilo ocidental.
É possível distinguir certos simbolismos presentes na obra, que podem ajudar a tentar decifrar algumas nuances do filme – sendo o mais importante a religião, tema bastante abordado na carreira do realizador.
A menina carrega o grande ovo, levando-o debaixo das vestes, como se estivesse grávida, enfim, protegendo-o como uma “mãe”. O que é que contém o estranho ovo? A esta pergunta nunca é dada uma resposta definitiva. Poderá transmitir a ideia de esperança, de vida, num mundo tão monocromático e estéril. A menina é possivelmente tida como a representação de um estado primordial da espiritualidade. O seu olhar soturno dá a impressão de um estado de espírito duvidoso.
A água é essencial na obra, visto que a protagonista coleciona-a em ânforas e deposita- as no local onde vive, uma espécie de uma arca (possível referencia à arca de Noé – o homem, nas poucas falas que profere, conta a história do dilúvio, no sentido em que o mundo foi tomado pelas águas para ser purificado). A água representa aqui a purificação, a libertação da alma, e o batismo.
O homem, visto por muitos como um soldado, carrega uma arma em forma de cruz e as suas mãos estão escondidas em ligaduras, numa clara alusão às chagas de Cristo. Representando a calma, o seu papel acaba por ser, de alguma forma, o de alertar a menina e orientá-la para o caminho certo.
Há outros seres que também parecem soldados, semelhantes a estátuas. Os seus tons cinzas deixam a impressão de que não são algo de natural e quando se movimentam, agem de forma mecânica, tal como na parte da pesca dos celacantos (peixe da pré-história, conhecido como fóssil vivo). Este momento é simbólico – os pescadores tentam a todo custo pescar os animais, ou melhor, as suas sombras, uma vez que são imateriais, destruindo a cidade no processo, uma ação totalmente irracional, dada a impossibilidade da intenção de tais pescadores. Os soldados que destroem tudo com a guerra, lutando por sombras, e acabam destruindo tudo por algo vazio…
A nave, ovalada, coberta de estátuas, poderá tratar-se do olho gigante de Deus, trazendo a ideia da caraterística divina da sabedoria, e as estátuas seriam as almas em estado de glória. Já no final do filme, a menina torna-se numa dessas estátuas, podendo dar a entender que ela chegou ao ápice do desenvolvimento espiritual. Consequentemente, o homem, o qual representaria Jesus Cristo, fora enviado pelo seu Pai, para auxiliar o caminho da purificação das almas, neste caso, a menina e a quebra de seu ovo.
O ambiente sonoro, criado por Yoshihiro Kanno, é deslumbrante. Desde os silêncios absurdos, dos recitais tristes de piano, do lirismo dos coros, das harpas, ao som do vento, a água a pingar, o badalar dos sinos, a metalicidade dos tanques. Uma completa imersão naquele universo.
Foram usadas técnicas inovadoras no campo, conferindo um belíssimo jogo de sombras na arquitetura de reminiscência gótica, e um verismo impressionante na água em movimento, por exemplo.
“Angel’s Egg” é uma pintura em movimento, um exercício mental em forma de arte, com uma atmosfera lúgubre e uma trilha sonora exuberante. Yoshitaka Amano (franquia de videogames Final Fantasy, Deen e Tokuma Shoten), com os seus traços únicos (aspeto obscuro, personagens pálidas, de pálpebras caídas e cabelos desgrenhados, com expressões sérias), criou uma obra temporal e Mamoru Oshii transportou-os para o ecrã. Para ser lembrado e relembrado pelas futuras gerações.
Realização: Mamoru Oshii
Argumento: Mamoru Oshii
Elenco: Jinpachi Nezu, Mako Hyôdô, Kei’ichi Noda
Japão – 1985
Animação
Sinopse: Num mundo pós-apocalíptico, uma menina passa os seus dias a vaguear, carregando um grande ovo. Um homem cruza-se no seu caminho e o ovo desperta-lhe uma enorme curiosidade. Ambos continuam a sua viagem juntos.