A última edição do maior evento cultural da Alemanha ficará na memória por vários motivos: Dieter Kosslick, Mr. Berlinale, teve sua última performance no tapete vermelho, como diretor. Não se iluda. A saída de Kosslick foi orquestrada pela Ministra da Cultura devido a uma carta assinada por gente graúda da área de cinema, exigindo uma restruturação da Berlinale. Kosslick sai com o orgulho ferido de quem não quer largar o osso. O poder exercido durante muito tempo não seduz apenas, vicia.
Cerimónia de Encerramento: o bairrismo mora logo ali
O ritual de despedida para Dieter Kosslick roçou o patético. Ao invés de qualidade na retórica da despedida, optou-se por quantidade. Até um ursinho de peluche em tamanho XXL houve para o Mr. Berlinale. Vale lembrar que o urso é o símbolo da cidade. Também teve discurso, especialmente longo da Ministra da Cultura Monika Grütters.
Martin, o meu colega polaco, mostrou-se irritado com a presença da ministra: “Em Cannes e Veneza não se vê ministros nas cerimónias de abertura e encerramento!”. Eu até percebo que a presença da ministra seja algo importante, como sinal para o mundo que o cinema na Alemanha tem uma grande relevância política. Porém, aparecer com um caderno de onde ela lê o seu discurso, é demasiado e quebra todo o flow e o glamour que um festival de categoria A precisa de oferecer.
2019, a ministra teve discurso dobradinha na entrada e na saída. Na cerimónia final, ela fez um discurso interminável para Kosslick, aumentando o sofrimento de todos, mexendo na ferida com um texto empacotado de elogios, mas que vai de encontro à realidade dos fatos.
Depois foi a vez de Kosslick procurar longamente no bolso, um chaveiro para dar à apresentadora Anke Engelke, que fazia, como apresentadora e comediante, a dobradinha anual com ele nas cerimónias de abertura e encerramento. “Esse é o chaveiro da chave do meu coração”. Ai, que preguiça!
Como bandeira pouca é bobagem, o antecessor de Kosslick, o franco-belga Moritz de Hadeln também apareceu lá para “prestigiar”. De Hadeln foi o pior realizador da Berlinale e quando ele se foi embora, só faltou abrir o champagne para comemorar. Na sua época, o filme alemão era coisa rara na mostra competitiva e o ditado mais ouvido durante o festival naquela época era: “O cinema alemão está morto!”
Poucos minutos antes do antecessor de Kosslick ser anunciado, do lugar privilegiado em que estava, eu acabara de constatar a sua presença. Que susto! Na minha lembrança ele é tão remoto que a sua aparição causou uma mistura de susto e horror. A criatura deve ter passado dos 90 anos! Dieter também anunciou os novos, seus sucessores. Ao contrario de todo o resto incluindo, um filme com seus melhores momentos, essa cena foi curtíssima. O abraço apertado a Carlo Chatrian (ex-diretor do Festival de Locarno) foi para impacto mediático. Ninguém quer ser despedido e sair de cabeça baixa perante as câmaras do mundo todo. Vamos dar a César o que é de César: Dieter estava puto, mas saiu com dignidade. A sua saída vem na hora certa e trará ótimas novidades para a Berlinale. Seu braço direito, Thomas Hailer (ex-curador da mostra Generation) também sai.
Daqui para a frente…
Uma das mais bem-vindas medidas da nova administração seria a extinção ou reformulação completa, incluindo a curadoria e assistência de imprensa da Mostra Culinária (Kulinarisches Kino). Fundada em 2007 por Kosslick, um adepto ferrenho do movimento Slow Food e amigo de expoentes da área como o italiano Carlo Petrini e tantos outros chefs. Porém, como o tempo, o tempero foi azedando, foi colocada muita água no feijão e houve muito arroz requentado.
A assessoria de imprensa está empenhada em manter a imprensa afastada dessa mostra. Situações bizarras e indignas para jornalistas que trabalham o dia inteiro. A eles e elas são oferecidos um lugar em pé na entrada com a porta abrindo toda a hora e o vento gelado marcando presença e isso, regado a uma taça de vinho para ficar assistindo os convidados degustarem os seus menus e depois ouvir a conversa entre especialistas na área da culinária. Tanto ao formato em lidar com a imprensa, assim como a linha dos filmes, mudaram para pior, muito pior. Ao invés do aspecto inovativo de início e grande nota política, já que somos aquilo que comemos, a mostra KK se tornou um evento decadente de um público estéril, que adora repetir rituais e já deixou claro não gostar de novidades na telinha. Os filmes são pasteurizados e o valor dos ingressos para o filme incluindo jantar e mesa-redonda de especialistas, é inacessível aos berlinenses. Se Berlim quiser manter o rótulo de um Festival de Público, isso (e muitas outras coisas) precisam de mudar.
Patrocinadores
Para o lugar de prestigio e de luxo para celebridades, o Berlinale Lounge, não foi encontrado patrocinador. Aquele que outrora angariava verbas de patrocínio de fabricantes de automóveis como VW ou BMW, este ano ficou vazio. O lugar que também servia de ponto de encontro entre jornalistas e realizadores brilhou com um galpão esquecido dentro do centro de imprensa: sem catering, sem conversas, sem interação. Somente grupos fechados de equipas de filmes ali se encontravam para tomar champagne. As public relations precisam de ser muito mais do que isso. Esse desenvolvimento é quase um resultado lógico que a Berlinale 2019 foi a marcha banguela, até que outros motoristas possam engatar a primeira, segunda, terceira marchas e arrancar com o carro.
O patrocinador L’Oréal, um dois mais fiéis, reduziu, visivelmente, a injeção financeira, e o outro patrocinador, Nespresso, cancelou também um Lounge, o da Plataforma com a mais estonteante vista do céu sobre Berlim, um lugar de confraternização de jornalistas e realizadores, depois de um longo dia de trabalho
A Berlinale 2019 foi muito pobre em plataformas de encontros. Ficou mais individual, mais egoísta e, sim, mais barrista.
Competição
A gente sabe: não se pode apostar um centavo de euro nos filmes de abertura da Berlinale. A maioria não serve, não acerta o ponto, desanda. 2019 não foi diferente. Com ”The Kindness of Strangers”, um daqueles filmes para se assistir quando se está gripado, nada tem gosto e nem água desce e está condenado a ficar debaixo de cobertores.
Natureza exuberante – Viva a Cinematografia
Se houve alguma “linha vermelha” na Berlinale como um todo, essa foi caracterizada pela sublime fotografia em vários filmes. Tomadas espaçosas, silenciosas e instigantes, ratificam a beleza da natureza em “Out Stealing Horses”, “So Long, my Son”, “Talking About Trees”, “Estou me Guardando para quando O Carnaval Chegar”, ”Querência”. Esses highlights para a retina, não justificam a seleção morna da mostra competitiva que, desde 2011, vem, a olhos vistos, se descaracterizando. Onde estão os filmes ousados? Os filmes que só passam em Berlim? Os filmes de cineastas novatos como o filme do Jayro Bustamante em 2015?
Em conversas com pessoas atuantes em diversos setores das artes visuais, o denominador comum resultante dessas conversas é que a próxima Berlinale terá muitas novidades, mudanças.
A saída do Mr. Berlinale irá dar uma injeção de internacionalidade ao festival, acabar com a hype bairrista em torno de Kosslick e o demasiado foco mediático em torno de uma só pessoa. O foco principal devem ser os filmes, realizadores e obras.
Cinema do Brasil
Mesmo com o atualmente Brasil à beira da ingovernabilidade, como já havia previsto o cientista político da Universidade de Coimbra, Boaventura Sousa Santos, esse fato não foi sentido e nem refletido na Berlinale. Ainda.
Com doze filmes e dois premiados no âmbito alternativo “Espero, tua (Re)volta”, sobre a ocupação das escolas públicas em São Paulo em 2015 e a co-produção Brasil-Argentina “Breve História del Planeta Verde”, que levou o prémio de melhor filme na cerimónia dos Teddy Awards, que premia obras sobre minorias e a comunidade LGBT, o Brasil saiu sem prémios, mas teve uma excelente participação, na qual o cinema acabou sendo uma janela para a discussão e um termómetro sobre o momento político no Brasil.
A parte da produção brasileira em “Breve história” é de Paulo de Carvalho, brasileiro e residente em Berlim, dono da Autentika Filmes, incentivadora de filmes autorais da América Latina.
Prémios, prémios, muitos prémios
Ganhar o Urso de Prata e de Ouro é algo que nos leva para Marte ou como disse em entrevista à autora deste texto o polémico realizador brasileiro José Padilha, vencedor do Urso de Ouro em 2008 com “Tropa de Elite”, “Não é que o produtor ligará para você para te oferecer dinheiro (para o filme), mas quando você liga, ele atende”.
Os premiados e premiadas terão caminhos adubados para os próximos projetos, porém vamos combinar: a concorrência foi bastante fraca.
Que o realizador François Ozon ganhou o Grande Prémio do Júri com um filme que tem todo o formato de produção de TV, não deixa a conta fechar. E que a atriz, também francesa, Juliette Binoche estava na presidência do júri é, com certeza, somente uma coincidência.
O “Synonyms”, filme israelense, verdadeiro underdog na lista da mostra competitiva, sair como vencedor, combina bem com a característica da Berlinale: surpreender a plateia enquanto se mantém politico.
Que “Marighella”, realizado pelo brasileiro Wagner Moura, não tenha levado prémios técnicos, se deve a atuação do protagonista Seu Jorge, que como cantor é uma grande estrela, mas fica muito aquém do nível de festivais de categoria A. Indiscutível é, decerto, a importância da exibição de “Marighella” exatamente em Berlim, no momento crucial que o Brasil atravessa.
O único premiado plausível da Berlinale deste ano foi o filme “System Crasher”, com interpretação da fenomenal atriz Helga Zengel. Guardem esse nome! Essa miúda, que deu vida e surtos e gritos a uma menina hiperativa de 9 anos, faz do filme um magnético para a retina. O filme, de uma realizadora, aborda uma temática muito tabu na sociedade alemã.
Nora Fingscheidt (35), participou duas vezes na plataforma Berlinale Talents e foi vencedora do prémio First Steps Awards. Ela precisou de 4 anos para escrever o argumento que resultou em 123 páginas e 67 dias de filmagens. Da mostra competitiva, ela voa para o mundo. Nem assim, abdicou de um discurso retrógrado e bairrista, que vai de encontro ao festival de mulheres que a Berlinale, edição 2019, mostrou ser.
Olhando para a câmara de TV da 3SAT que fazia transmissão ao vivo, ela agradeceu a cada produtor, atores e atrizes, ao Phillip, seu companheiro, “pelo apoio”. Agradeceu ao pai, à mãe e a toda a família (a quem ela já havia agradecido também no final da premiere de gala do filme) e mandou um recado para o filhote em casa: “Eu já estou chegando”. Existe uma dicotomia entre mãe dona de casa e mãe que trabalha fora, como se esse “tipo” fosse de coração frio e não gostasse do filho ou priorizasse o sucesso profissional ao papel de mãe cuidadosa e dedicada. Um realizador, dificilmente daria uma declaração dessas, o que mostra o estereótipo ratificado pela realizadora. Seja qual a motivação para uma declaração dessas: esse discurso não cabe numa cerimonia de festival internacional. Ponto.
A diretoria de produção da 3SAT que transmitia o evento ao vivo, poderia ter caprichado mais nas imagens, melhorado a transmissão como um todo.
O final da cerimónia foi sintomático para todo o festival: um amontoado de pessoas tentando se organizar para fazer uma foto dos premiados que coubesse num frame de uma câmara.
A próxima Berlinale será mais tarde do que de costume. Caminhamos para o final de fevereiro e início de março. Em 2020, tudo de novo.