Depois de ser arremessada ao time de auteurs de primeira linha Céline Sciamma agora aspira grandeza, mas o seu novo Petite Maman, de pouco mais de 1 hora, parece longo demais e sabe a pouco. E na seção Encounters, um outro alien estabelece uma relação de amor e ódio com o espectador, o horror vintage “The Scary of Sixty-First”.
O dia começou com muita expectativa com o novo filme de Céline Sciamma, talvez a estrela maior desta 71.ª edição do Festival de Berlim. As expectativas não são à toa. Depois do seu “Retrato da Rapariga em Chamas“ ter causado um enorme rebuliço em Cannes em 2019 e de ter feito uma respeitável carreira internacional colecionando dezenas de prémios e ter se transformado numa unanimidade entre público e crítica, não era para menos.
No entanto, há uma rigidez no novo “Petite Maman” que nunca permite que o filme transcenda. Nelly (Joséphine Sanz) é uma rapariga de 8 anos que acabou de perder a sua adorada avó, que faleceu de uma doença degenerativa hereditária. É então que a menina acompanhada do pai e da mãe Marion (Nina Meurisse) têm de retornar uns dias à casa onde a avó vivia, para pôr a casa em ordem e resolver pendências do passado. Passado alguns dias, a mãe de Nelly desaparece então a garotinha encontra uma outra menina na floresta e as duas desenvolvem uma intensa amizade, enquanto (re) constroem uma velha cabana.
Sciamma retorna ao mundo infantil, território que já conhece tão bem, para contar uma história de luto, transformada em lúdica, vista através dos olhos de duas meninas. Recordamos do seu “Girlhood” de 2014 ou ainda melhor, de “Tomboy”, o filme que mais se parece com “Petite Maman”. Vale mencionar aqui que foi o filme que transformou Sciamma numa espécie de “queer hero” do cinema indie europeu, levando o prémio Teddy de melhor filme LGBT na Berlinale em 2011.
“Petite Maman” na verdade quer ser mais que uma história de luto, quer ser também uma história de fantasmas. No sentido literal, também, mas sobre os fantasmas metafóricos, aqueles que, geralmente do passado, estão sempre à espreita, à procura dos traumas para poder existir.
O problema é que a disciplina formal com que Sciamma filma essa história quase fúnebre é tão autoritária e claustrofóbica que o filme acaba por se fragilizar. Numa história tao simples e curta como esta, para um filme que tem apenas 70 minutos de duração, tem-se a sensação que ele está a se arrastar por horas.
Um outro problema é a dureza com que os atores discorrem seus diálogos, o que já virou uma espécie de marca registrada de Sciamma, bem reforçada no seu filme anterior. Só que no caso da sua lady on fire, numa história passada no final do século 18, onde as classes sociais eram definidas pelos ritos de linguagem e ordem hierárquica, a rigidez aqui pode até ser justificada. Em Petite Maman não dá liga que se pegue e os poucos diálogos que acontece entre as meninas, são entregues à marretadas.
E depois tem as jovens atrizes, pobrezinhas, que também não ajudam em nada. Depois que a sua mãe desaparece, Nelly encontra uma outra menina na floresta (interpretada pela sua irmã gémea Gabrielle Sanz) e as duas logo desenvolvem um vínculo forte e passam a meditar sobre a vida e o futuro, enquanto constroem a tal cabana na árvore. Mas os diálogos são entregues ao espectador de forma tão estudada e inverossímil, o que acaba por produzir um resultado um tanto caricato. Dirigir crianças em frente a uma câmara não deve ser tarefa fácil para ninguém, mas causa surpresa quando se trata de Sciamma.
Para além disso, Petite Maman quer ser visto como um filme discreto, onde nada realmente se passa mas onde é suposto acreditarmos que um mundo ali acontece. O resultado soa a falso e o registro falha. E então a ilusão do poder das imagens, que é basicamente onde vive o cinema, acaba por desaparecer.
Dá-se a impressão que Sciamma está em busca de grandeza, e nada de errado com as suas aspirações, mas a profundidade (ou a falta) da mensagem aqui além de parecer afetada demais, sabe a pouco.
Dito isso, é preciso repetir que Céline Sciamma continua sendo uma das mais interessantes realizadoras do cinema de autor europeu, mas Petite Maman é um filme menor e talvez o filme mais fraco na carreira da francesa. Mas que, é preciso afirmar, serviu para nos lembrar que nem sempre os filmes, e os seus autores, precisam aspirar ser maiores que a vida.
As obscenidades do inclassificável “The Scary of Sixty-First”
Precisamos de retornar ao dia anterior, quando um vídeo pornográfico no início do novo filme de Radu Jade, sequestrou as atenções da competição dessa Berlinale virtual. Recuperados do filme do romeno, não fazíamos ideia do que estava a nossa espera. E foi assim que entrámos no bizarro e hipnotizante “The Scary of Sixty-First”. Segundo filme do dia a utilizar o sexo para chocar a audiência, e a desenvolver uma estranha obsessao por pedofilia e por Jeffrey Epstein.
O filme de estreia da podcaster e conspiracionista Dasha Nekrasova é uma mistura de softporn b-movie com filmes de horror dos anos 70´s. Enquanto o genérico de abertura está rolando, com os close ups de esculturas assustadoras no alto dos prédios em Nova Iorque, podemos quase jurar que se trata de um filme de William Friedkin.
O filme começa com Noelle (Madeline Quinn) e sua colega de quarto Addie (Betsey Brown) quando elas estranhamente encontram o apartamento dos sonhos numa das zonas mais caras de Nova Iorque, por um valor especialmente barato. Após se mudarem para lá, a dinâmica que se desenvolve entre as duas, agravada pela presença constante do namorado de Addie, é um material que promete uma carga muito explosiva.
Este prólogo tráz de imediato um outro filme à memória, o fabuloso “Queer of Earth“, filme realizado pelo norte americano Alex Ross Perry e protagonizado por Elisabeth Moss que desafiava género. O psychothriller de 2015 acabou por se transformar instantaneamente num clássico moderno, pela elegância na forma como contou uma história de obsessão e dinâmicas de poder entre duas amigas, sempre a nos confundir a cada esquina, e a criar múltiplos significados a cada olhar das suas personagens.
No entanto, o filme de Nebraska, que começa sedutor como o filme Ross Perry, toma um outro rumo completamente distinto. Uma vez instaladas no tal apartamento, somos apresentados à uma quarta personagem. Uma rapariga da qual não sabemos o nome (apelidada apenas de “the girl” e interpretada pela realizadora Nekrasova) e que informa Noelle que o apartamento onde elas vivem, na verdade, é uma das propriedades onde Jeffrey Epstein realizava suas orgias.
É aí que a coisa desbaratina de vez e o filme se transforma em vários. De um lado temos Noelle e a “the girl” discutindo sobre feminismo, ou a morte de Epstein, e se revelando sempre mais obcecadas por teorias da conspiração (“você já ouviu falar do Pizza Gate?” questiona uma delas). Por outro, temos Addie, que começa a receber espíritos malígnos e a elaborar rituais de possessão onde ela pratica atos de masturbação ora em frente da igreja, ora no próprio apartamento.
Dario Argento vem logo à memória, e uma homenagem ao mestre italiano nao seria a mesma coisa sem muitas cenas gráficas, nudez e sangue menstrual. A um dado momento, enquanto Addie faz sexo com o namorado, ela grita – com semelhante efeito de voz do usado por Linda Blair em “O Exorcista”: “fode-me como se eu tivesse 13 anos!”. Queremos olhar para o lado, mas a relação de amor e ódio que se estabelece com o espectador a todo momento acaba por se transformar numa das coisas mais divertidas do filme.
“The Scary of Sixty-First” em nenhum momento se leva muito a sério, ou está preocupado com uma mensagem, e isso é talvez o que torna o filme ainda mais sedutor. Numa outra cena adiante, quando as duas entram numa loja, a procura de respostas sobre uma carta de tarô, o vendedor por trás do balcão logo pergunta “quais são realmente os seus objetivos espirituais?”; mas nunca ficamos a saber da resposta.
Quer Dasha Nekrasova desafiar o status quo do patriarcado para organizar o mundo? Fornecer um comentário atual do pós #metoo? Ninguém realmente sabe, e na verdade não importa muito. O trabalho de colagem que ela faz, transformando seu filme num inclassificável pastiche de um cinema marginal que se fazia nos anos 70, é realmente impressionante e é impossível ficar indiferente.
“The Scary of Sixty-First” estreou ontem na novíssima seção Encounters, de onde está a sair as coisas mais arrojadas e irreverentes dessa edição.